terça-feira, 1 de novembro de 2011

A ÚLTIMA CANOA DO ARASSUAHY


O vivido existira na fronteira do cerrado encaracolado com a caatinga, no fecho do derradeiro quartel do século dezenove... No relato que lembrarei aqui, tentarei ofertar, com o pouco passado que me sobrou, os gestos da fala e o espírito de ver a vida daqueles homens daquele lugar, naqueles tempos...
O rio Arassuahy nunca dera pé, vazão à navegação, com os seus funis, chupões e uma rede de rodamoinhos imersos. Mas, na correnteza empedrada e encachoeirada, teimava-se canoando...
Eram os vindos de 1900, e eu me achei num daqueles canoões de cinquenta braças de comprimento. Eu descia de Belmonte na Bahia contra a corrente, rio acima, com a tenência de magistrar na recém emancipada cidade de Arassuahy. A estrada era o rio. O canoão trazia de Arassuahy os produtos do sertão, carne de sol, latadas de carne de porco conservadas em banha, feijão, arroz de sequeiro, tonéis de cachaça, couro cru, pequi, rapadura e outros sortimentos. E do porto de Belmonte, encanoaram naquela madrugadinha, além deste humilde professor, sacas de sal, fazenda de panos, canecas e panelas de alumínio, garrafas de barbitúricos, mercadorias de mascates e outras indústrias.
A viagem custava longa, e logo de entrada, puxei amizade e principiei um prosear com um dos canoeiros, quando o sol ainda paria a manhã. Eu queria mais orelhar que bater a língua e fui escutando:
- Nosso pai já era remador, foi dele que herdei essa canoa, e nessa lida se come e se dorme na canoa. De sorte que ele conheceu minha mãe fazendo uma travessia... Se olharam, se enamoraram e se amancebaram. Meu pai ainda não detinha patrimônio e a valença foi habitarem a canoa numa barraca armada perto da popa, onde meu pai guiava. O resto da tripulação dormia mais adiante. Entonce minha mãe virou tripulação e ficou de cozinheira e lavadeira, mas nunca se negou a pegar no cabo do remo na urgência da precisão. Pois os dois me sinceraram que eu fui embarrigado e parido naquela barraca. E dispois, diversas pessoas sensatas testemunharam a informação. Do que eu mesmo me alembro, era d´eu, desde que me tenho por gente, brincando, pescando dentro da canoa ou tomando banho no rio. Essa vida, esse rio, não entendo onde nasce, não sei das suas cabeceiras, nem nunca vi o seu final. Dizem que é no mar... Esse tempo, esse lugar, vim aparecer aqui. Mal, mal, mirei os olhos dos meus pais e fecharam. Sei que fui menino e aprendi a alegria da luta na labuta...
Havia leitos onde a braça do rio se abria em mãos e dedos, e veias que sangravam espumantes entre cardumes de barbatanas de rochas; à flor d’água ou afogadas. O sol começava a sangrar nos horizontes.
- Não conhece o mar? - O céu azulava no horizonte d´água do rio.
Noutras corredeiras ele se espraiava e se acelerava sobre calhaus de cristal. Estreitafundava-se, aprumando, encurvando, serepentinava entre molduras arenosas numa margem, lajedas noutra banda, acolá sobrancelhado por vegetação ribeira.
- Não, porque além da canoa de meu pai, herdei esse trecho de rio que começa antes da foz e termina num encachoeirado, onde se faz a baldeação das gentes e das mercadorias pra outra canoa. Remo da hora que acordo até dormir, preparamo e cumemo o feijão com toucinho e miudezas de porco, tomém aqui dentro.
Garças a esfumaçar em nuvens brancas à bicada da proa, arengueiros ao vento em silvos, depenando a sonsidão apavorável das marrecas.
- Mas de vez em quando você desce né?
O Socó em galope rasante sobre a tona, à frente da linha da canoa, querendo-a carruagem aquática, fingido-se desafiante, perseguido, guia voluntário, ou o que sei lá.
- Num dá, quando tô na baldeação do encachoeirado é a conta de trocar as mercadoria com a outra canoa. Passamo as nossa pra ela e as dela pra nossa e volto rio abaixo. E quando chego no Porto das Canoas, é a conta de descarregar a mercadoria e carregar com outra.
As Verdadeiras gemelancolizam a paisagem pousada nas árvores praieiras.
- Mas como cê faz pra visitar a cidade, conhecer as coisas da vida?
O bote em curva, para o fundo, do medroso ( já que medonho) jacaré. E ilhas de seribas em perpétuo banho no ralo do rio.
- Pra te ser verdadeiro, eu não nem nunca não, mas uma vez pisei em terra pra caminhar e meu estambo imbruiou tanto que gurmitei até as tripas. E dispois disso, nem vê!
Há passagens camaleônicas onde o canoeiro preto fica pardo; o pardo, branco e o branco entomateia.
- Mas cumé que cê vive assim criatura?
Mesmo para o piloto que já esqueceu a cor da terra: Junto à barra do Pontal, onde o arassuahy se jequitinhonha, um muro natural ponteia o rio, derrobando uma queda de mais de metro d’água. Um língua na banguela das águas, bem no meio é a única passagem para o serpentismo das canoas: É o Capoeirão, malafamado pelas rasteiras fatais.
- Vivi vivendo, vendo minhas mãos crescendo, meus braços engrossando, cabelos branqueando, tudo sem minha vontade, sem poder fazer nada, que nem num canoão sem remos... Mas me criei na força, sem assentar pra pensar, nem ter medo, entristecer, nem com doença... nunca dei prosa. Só na galopada, só no sanguente! Acho bão, o agir no dia, com a cabaça da cabeça no sol quente, com o trote do corpo suando. E de noite, durmo fundo de cansado... Enfrentando tudo que me invoca, com brabeza, de peito cheio, sem dá pra trás... A coragem vigora com o hábito e a covardia, tomém! Mas óia: Vista aberta e fala fechada em toda piscada...
Mais águas, avista-se o Passo Do Frade, rocha metida a busto, que não passa o pé em, nem batiza ninguém.
- Mas cê não tem curiosidade de conhece gentes novas, aventuras?
Depois, o Cubangos, estreito arquitetado pela natureza, no jeito do homem redear uma ponte. Inriba de São Tumé abisma um encachoeirado de mais de uma légua de ribanceira. Incontáveis canais e rochas batizados de Labirinto: Se o piloto não alinhar o caminho das águas, busca a procura, acha o das pedras, perde o prumo, o remo, o rumo, a carga, a fama, as perdas e até a vida. Durante quinze minutos de tempo (horas pelo medo) o piloto inunda a vista só da água, os proeiros de varas vão abrindo picadas para a tropa canoeira.
- Toda hora entra gentes novas nessa canoa, que nem o senhor. Morenas bonitas, dotores, mascates, vaqueiros do sertão, homens do mar, estrangeiros da língua enrolada. Como esse trecho dura três dias e três noites , dá pra apertar amizade. Escuto muitas histórias do mundo, fico sabendo de quase tudo. Menos os estrangeiros, que até hoje num consegui inrolar minha língua pra prosear com eles.
Assombra adiante o encachoeirado do Clinelo, faminto bebedor de cargas. Porém a mais respeitada é a cachoeira de Sant’Ana, quatro léguas por riba do Salto. Ali a carga é baldeada por terra, para ser reencanoada no mijo da Santa. Mesmo pras canoa sem cangalhas, lá é um cemitério com lápides naturais de pedras, afiadas, morcegas, premonitórias...
- Mas cê nunca pensou em casar, ter esposa, filhos, casa, família?
Com quantos paus se faz uma canoa? As canoas são esculpidas em um só tronco de Ipê erado, para suportarem o açoite da torrente e as porradas pétreas das rochas no lombo. E canoa ferida sangra para dentro...Meu pai num casou? Teve muié, fio, famia, amigo. Se ele nu percisó de casa, eu tomém num perciso. Agora eu num tô dando sorte de ajeitar uma morena que aceite viver aqui na canoa, que nem minha mãe...
A tripulação é três: embarca-se de um piloto e dupla proeira, pastores das obesas cargas de bem umas cem arrobas. Rio abaixo, a canoa é tangida no meio do curso e desce à voga a favor do fluxo.
- E ocê não se sente sozinho, assim?
Rio acima, vai bebendo pelas beiradas, marginando a contra-corrente à vara, menos nos encachoeirados. Ali desenrodilha-se a regeira da proa, um dos proeiros se deságua para a areia, garantindo a subida, com a cumplicidade suada dos dois camaradas e pelo empurrão da vela estufada, quando o vento é amigo.
- Cumpanhado ou suzin, são ou doente, o mai forte é o sujeito se achar sempre valente...
- Mas às vezes num dá tristeza de viver?
Água morro abaixo, toda uiara ajuda: No meio do rio os proeiros tocam os remos presos à borda, as vogas orquestram, os homens cantam, sob o arranjo do canoar, cantilenas sertaneiras (há pouco tempo, perdidas pra sempre...): tristonhas como a natureza virgemorta e sinceras como a Verdadeira.
- Nunca deixei chegar tristeza. Nos tempos de calmaria, fico escolhendo a qual batalha me embrenhar. Inventando desafio... Num se deixa é o sangue esfriar, senão cuaia... Num quero morrer, mas quero morrer assim, luitano...
De remadas em descida, na sela de madeira no pelo d’água, encastela do alto uma casinha cercada de bandeiras, com sua horta na rampa da barranca. Da canoa acena-se o comprimento que se apresenta e se despede num só grito, e lá de riba, outros confirmam a escuta e a presença de vidas.
- Mas e as alegrias da terra, das cidades? - O sol deslizava para o meio do céu.
Enquanto o galope d’água desliza num passo ralo, o caldeirão da feijoada nativa funga fervendo e cheirando na popa, onde se graveteou um fogo sobre um lastro de areia. Os canoeiros estão prenhes de um vazio devorador. É a força para a doma das correntezas: Quando zarparam já esquentaram o jejum com uma espetada de carne-de-sol.
- Aqui tem as alegrias das águas, da canoa. Tem violeiros que chegam, repentistas, cantorias...
O céu clareia dez horas, refletidas nas sombras dos ombros. A canoa abica à margem arenosa; num remo hasteado na areia coleira-se a regeira da proa; a tripulação treispulam para a praia com toda a cozinha fluvial e cada deles mais bem disposto, vão engamelando o gostoso à farta da gula. O feijão cozinhara gordas toras de toucinho, agora esmagadas pelo salivante canoeiro com o garfo de pau, nadando na gordura escaldante, desembocada na gamela sobre o arroz de canoeiro e a carne-de-sol assada no espeto de pau junto ao peixe crocante fisgado à noite, embochecham as bocas sedentas de fome e inundam a praia de aromas picantes.
- Mas e a falta de mulher? Um homem sem mulher não é homem... - O sol está no meio do céu.
Depois de areado o sujado das panelas, reencanoar e reviajar à corrente. Se na barra das vistas vem despontando outra canoa é bem vinda e bem conhecida. As saudações em gritos estentóricos são bravas putarias recebidas como boa chalaça: troca de forças e vontade de mais para todas...
- Então sou um minino antigo. Mas na barra do Arassuahy com o Caiauzin tem uma casa dessas moças que cobram pra dormir. E as veis elas desce pra dormir na prainha... - O sol começou a descair pro oeste.
O café é coado no filtro de toda hora: esperta mas não sustenta. Na luta contra o corpo, mais coragem vem do chouriço: o caldeirão pormeiado de gordura porcina pururucando, derrete um punhado de rapadura ralada, mais farinha, remando a combinada até o ponto de angu. Aí, é até rapar o fundo. E a canoa vai contínua a arfar nos baixios ao ranger das vogas: arranjo harmonioso para as saudosas melodias, vencendo terras na poeira das águas... O sol começa a morrer e a noite a nascer na primeira estrela.
- Mas e a igreja, a religião, a sabedoria pra viver? - O sol começa a se pôr pro trás da mata ribeira.
A janta é no apear de alguma ilha ou areal. Acende-se a barraca com a vela da canoa e remos pilastreados na areia.
- Uai, eu num sabia que a gente percisava delas pra viver...
Troca-se suores com o rio, alguma abóbora furtada numa vazante joga dados na panela. Proseiam-se, estoreiam-se, janta-se e se deitam enquanto a lua bóia no céu, aboiando um rebanho enuvenlado. A viola escapa então do caixote e três vozes uníssonas escoam as cantigas de beirar-mar:
♪...ah beira-mar, adeus dona,
adeus riacho de areia...
adeus a deusa dona deusa
eu já vou mimbora
eu morava no fundo d’água
não sei cond’eu voltarei
eu sou canoeiro! ♪
- Tá certo, cê tá com a razão e me convenceu. Essa vida é muito boa... Mas tenho uma notícia muito ruim pra te dar, mas tenho que te dar, não por maldade nem por revanche, mas pra que ocê se prepare pro futuro... Tão construindo uma ferrovia ligando Arassuhay a Ponta de Areia na Bahia. É a Bahiminas. O transporte de gentes e coisas vai ser todo de maria-fumaça.
O rio vai uivando, roncando, baixo, baixinho...
- Agardeço a novidade, é de serventia. Mai em quanto tempo ela fica pronta?
Novo dia, mesma disciplina e cana não pinga na canoa. Rio acima, a canoa só vem à riba no muque dos remadores.
- Fica toda pronta em dez anos...
No peito do canoeiro seca tatuado um grande calo onde é apoiado o pé da vara para a calcada, enquanto o sol mais vivo das gerais chicoteia os costados dos homens bravos.
- Ah, que boa notícia o sinhô me deu agora! Eu já tô co quarenta, ninhum canoeiro chega nos cinquenta, não! Muito agardecido, muito agardecido mesmo, seo dotô!!! - Abre uma risada ao sol me estendendo a mão pesada.
O canoeiro do arassuahy é sempre alegre, e sempre morre muito jovem, levado pelo coração. Existiu apenas num intervalo de um rio, apenas no intervalo de um tempo, correnteza abaixo, correnteza acima, acorrentado eternamente...
Tive notícia de que aquela foi a última grande canoa do Arassuhay, que sobreviveu àqueles canoeiros, e dela só resta essa foto tirada na enchente da cidade de Arassuhay em 1941.

O CEGO DIANTE DO ESPELHO ou CONVERSA INÉDITA COM JORGE BORGES




Chego aos altos umbrais do Arcângelo e já ouço, como se entrasse em uma concha, o marulhar de conversas sobrepostas, músicas simultâneas e do tilintar vítreo dos copos. O lugar é um amplo saguão de edifício, cujo espaço central é ladeado de bares, lanchonetes, sebos, e lojinhas de discos. É a nave da catedral da baixa boêmia. Sinto o aroma de porções fumegantes de carnes e batatas fritas trazidas pelos garçons, que vão se misturando a cheiros de cigarro e perfumes baratos misturados. Vejo um horizonte de cabeças, flashes de sorrisos e gargalhadas rasgarem em meio à multidão sentada. Palavras ensopadas de cerveja saindo ansiosamente das bocas, nesgas de coxas nuas cruzadas sob as mesinhas de metal, saias curtas, jeans apertados, lábios pintados de vermelho, decotes negros emoldurando seios. Atravesso ondas de pessoas se levantando, se sentando, chegando, indo embora, e me posiciono numa mesinha em frente ao sebo do Isidoro. Francisco Isidoro.


O sebo é de uma só porta, estreito e longilíneo como um corredor, cujas paredes são formadas de livros do chão até o teto. E tão comprido que vai escurecendo à deficiência das lâmpadas, até ficar totalmente escuro como túnel, cujo final não se enxerga. E é lá no fundo que se esconde o velho Isidoro. Pra ele não faz diferença, já que é absolutamente cego. Grito o seu nome (“Seo Francisco!”) e em resposta ouço o eco de seus passos engasgado com os de sua bengala. Vem vagarosamente em linha reta, mas com a segurança de quem vive ali há setenta, oitenta anos. Um garçom do bar ao lado vem me atender.


- Me vê uma gela... Não, por enquanto não! – Lembro que estou sem grana. – Aqui Seo Chico!


Ele vem até a mim no seu velho terno e gravata, cheirando a livros velhos, acerta o pé da mesinha com sua bengala, puxa uma cadeira e se senta, abrindo um sorriso na direção de ninguém. Reparo nos seus “olhos sem olhar” e eles sempre me parecem mirar um horizonte muito distante, imaginário mas real.


- Como vai, seo moço? – Pergunta ele, descobrindo a direção de meu rosto.


- Vim te fazer uma visitinha. – Arrasto minha cadeira mais pra perto.


- Não vai beber nada hoje? – Avança a cabeça pro lado da minha, e seus cabelos finos e brancos penteados pra trás, lhe caem na testa.


- Como é que senhor sabe? - Ao fundo, em um bar mais recolhido ainda que o nosso, estão dois casais em mesas opostas. As duas paredes laterais e a parede do fundo do barzinho têm espelhos que vão do teto ao chão.


- Não estou sentindo o cheirinho bom da cerveja... – Tenta ajeitar os cabelos com a mão.


- O senhor enxerga mais que nós, Isidoro. - Numa das mesas está uma morena num vestido claro e justo.


- Tá com sede, mas sem numerário? Eu lhe pago um trago. – E apoia as duas mãos sobre o cabo da bengala.


- Tô dizendo que cê enxerga fundo... Vou ficar te devendo essa. - ...De saia curta, cintura fina, ombros nus.


- Não me deve nada! – Sorri generosamente, erguendo as sobrancelhas, com os olhinhos fundos e vesgos.


- Então obrigado! – ...Anéis e colares brancos, contrastando com a pele morena. Assovio e ergo o braço pra o garçom me avistar.


- Sem briga! – E um de seus olhos fica mais fechado que o outro.


- O senhor fica muito escondido lá no fundo do sebo. É muito escuro. Assim o freguês chega e acha que não tem ninguém... – ...Cabelos negros ondulados e brilhantes, caindo um pouco abaixo dos ombros... Peço a cerveja.


- Não há fregueses há essa hora. E a escuridão não faz diferença pra mim. Além do mais não gosto de sair da minha gruta. - Fecha os dois olhos comprimindo-os como se ardessem.


- Fora da caverna, espreita a morte. – ...Olhos negros de odalisca, amendoados e com cílios postiços, contornados a lápis.


- Não temo a morte, aguardo-a com esperanças e impaciente. – Suas narinas se dilatam num suspiro.


- Mas o senhor sozinho no meio desses livros velhos... Se pega fogo, como vai fazer? – Sobre os olhos, sobrancelhas retas e realçadas, que vão se afinando rum às têmporas. Sobre as pálpebras, uma sombra azulada. A cerveja chega e o garçom a serve num copo americano.


- Houve um imperador chinês que mandou queimar todos os livros... – Vira-se pra mim, erguendo uma sobrancelha e abaixando a outra.


- Queimar a história? – ...Lábios em forma de folha, suculentos, úmidos, pintados com batom chocolate, sendo o lábio superior levemente mais fino que o inferior... Bebo um primeiro e longo gole.


- O mesmo que mandou construir a muralha da China. – E estica o pescoço enrugado como um jaboti saindo do casco.


- E cercar o presente, o tempo... – Vê-se ainda o lóbulo das orelhas da morena, donde pendem longos brincos prateados.


- Onde a morte, a degeneração do ser não podem entrar... – Olha pra cima sem olhar.


- Como na sua gruta? – Ao lado da morena está um jovem de cabelos pretos e lisos, penteados pra trás, com um leve topete, braços fortes, camiseta branca estampada com o rosto de Elvis, jeans azul claro e botas pretas.


- Eu já sou um degenerado! – E ri projetando o queixo.


- Sabe que há quem duvide que és cego, hem?! O senhor sabe exatamente onde se encontra cada um desses milhares de livros nessas dezenas de prateleiras. – A morena cruza as pernas e não posso deixar de reparar naquelas curvas, que terminam em sapatos de salto alto, prata, que calçam dois mimosos pés de dedinhos curtos... Bebo o segundo gole, esvaziando o primeiro copo.


- Não precisa enxergar pra isso, basta boa memória. – Muda a posição da bengala e das mãos.


- Mas ainda assim deve ser um labirinto pra o senhor... - Na outra mesa está uma loira...


- Eu me dou bem com labirintos... – Sorri levemente sem mostrar os dentes.


- E num labirinto a visão não ajuda muito... – Loira de cabelos cheios, curtos, encarolados e dourados, deixando a nuca à mostra... Encho outro copo espumante.


- A visão do olho, não. Mas pra um cego, sua visão está em toda parte, apesar do foco está em lugar nenhum. – E fica com os lábios entreabertos depois da fala.


- E por isso, o senhor olha mais pra dentro e enxerga mais profundamente. - Veste um vestido preto, que se inicia tarde, depois do começo do seios, que parecem quererem se libertar... Bebo o terceiro gole.


- É possível. Mas mesmo que eu enxergue o que outros não enxerguem, atrás disso há sempre outra coisa que eu não irei perceber... – E faz um ar professoral.


- Como assim? - E o vestido fatalmente seria vencido pelos seios, não fossem duas alças finas e pretas que se cruzam no colo níveo, segurando-os... Bebo o quarto gole.


- Mesmo que eu consiga enxergar e observar minha mente... Minha alma, meus pensamentos, minha consciência enfim, será uma outra consciência minha ou um outro nível de consciência que estará observando, e atrás ou acima dela há uma outra consciência ou um nível mais alto e assim sucessivamente. – Quando fala deixa mostrar apenas os dentes inferiores.


- A consciência da consciência da consciência... - Os lábios carnudos têm uma textura de pétala, realçada por um carmim vibrante... Bebo o quinto gole, esvaziando o segundo copo.


- Infinitamente... Meu pensamento é uma voz interior que ouço, percebo e observo fluir, mas esse sujeito que percebe é também uma outra voz, e a consciência dessa segunda voz interior é na verdade uma terceira voz, e assim por diante. – Abaixa o queixo quase encostando-o nas mãos sobre a bengala.


- Como aquelas bonequinhas russas que se vão abrindo e sempre tem uma dentro da outra. - ...Olhos verdes profundos, contornados por lápis esverdeados, intensificando mais ainda a cor.


- Como a matéria, o átomo, ou dois pontos no espaço, que por mais que sejam divididos, sempre haverá um espaço entre eles, que também é infinitamente divisível. – Ergue o queixo pra cima.


- Ou como o morceguinho da canção... – E começo a cantarolar e a batucar na mesinha de metal:


“Mas tem coisa pequena nesse mundo


Que desafia a ciência de verdade


Tá aqui uma que causa confusão


A ciência não dá explicação


Se morcego é ave ou animal


E como é que é feita a geração


Mata um, tem outro dentro dele


Dentro dele tem outro menorzinho


Procurando com jeito ainda encontra


Dentro do outro um outro morceguinho”


- É... É uma intuição que é universal na humanidade... – Estica um dos braços sobre a mesa.


- Isso é uma canção nordestina, se não me engano é do João do Vale. - ...Sobrancelhas arqueadas em vértice e finas lhe dão um ar de irresistível arrogância... Encho o terceiro copo.


- Tua memória é ótima. – Batuca os dedos sobre a mesinha.


- Só a musical. Já a do senhor é enciclopédica! - ...Brincos de ouro e pérola sobre a conchinha branca das orelhas.


- Acho que não, sou muito limitado. Não sou nenhum memorioso. A questão é que releio muito. Releio mais do que leio... Aliás relia! – E sorri – Depois dos 50 anos de idade, quando fiquei cego, leêm pra mim, não é? Mas gosto de ser esquecido. Assim posso sentir o mesmo prazer, ou outros prazeres em reler um livro que já li há oitenta anos atrás. E oitenta anos de esquecimento equivalem a uma grande novidade! Os escritores contemporâneos já são muito parecidos conosco, quem está atrás de novidade, vai encontrá-las com mais facilidade nos antigos... – Sua bengala cai e ele se abaixa pra pegá-la.


- É, a memória humana é muito limitada e nossa percepção da realidade, muito mais... Não conseguimos apreender completamente nem um instante... - ...Pulseiras e anéis de ouro, em mãos pousadas sobre a saia, se destacam sobre o veludo negro do vestido.


- Também, se conseguíssemos... O conhecimento perfeito de um só instante seria suficiente pra que uma inteligência infinita soubesse a história do universo, passada e vindoura, já que o instante presente é consequência do anterior e causa do posterior... – Pára de tamborilar os dedos.


- Então tudo seria inevitável e já pré-determinado, sendo possível deduzir o futuro... Mas e a interferência dos sujeitos, o pensamento, a ação, o livre arbítrio? - ...Pernas lácteas, que nascem em coxas grossas e se alongam até um scarpin de salto fino, preto fosco, que não escondem dorso dos pezinhos róseos... Bebo um longo e saboroso gole.


- Não creio em livre arbítrio. Essa noite, em que aqui estamos, não é uma noite. É uma série de séculos que a precederam. – E olha pra um ponto imaginário no chão, como se pudesse enxergar.


- Bem, mas agora por exemplo, eu tenho várias alternativas de pensamentos e ações e posso escolher entre elas. Decidir... - Ao lado da loira está um jovem moreno de cabelos lisos partidos ao meio, que se derramam pelos lados rente à linha do forte maxilar.


- Mas as alternativas não são infinitas. E sua escolha, decisão, já foi influenciada, pré-determinada pelo instante anterior, o pensamento anterior, as ações anteriores, suas, de seus pais, de seus avós até chegar no seu primeiro ancestral. – Leva a mão ao bolso do paletó como se fosse apanhar os óculos. Talvez a memória de um gesto antigo.


- É, mas pra validar isso, temos de dar voto de confiança absoluto em nossa memória. E se ela for falsa? – O garoto tem lábios pequenos e cavanhaque escanhoado. Veste uma camisa social vermelha com um colete preto por cima, que não escondem a forte caixa toráxica.


- É possível que o planeta tenha sido criado há poucos minutos, provido de uma humanidade que “recorda” um passado ilusório. Essa ideia é antiga... – Fala olhando pra cima, franzindo os lábios.


- E atual. Já pensei em escrever uma ficção onde seres humanos sofrem implantes de chips com falsas memórias em seus cérebros... Mas alguém já deve ter escrito isso. – ...O jovem veste calças de couro preto e sapatos de flamenco.


- Não há problema. Você pode melhorar a ideia, cunhar um símbolo humano. Quem sabe crie um personagem que se torne um mito pra o futuro. Como Dom Quixote... – Fecha os dois punhos sobre a bengala.


- Como Deus, pra mim o maior personagem que a mente humana já criou. E paradoxalmente, o mais absurdo e o mais acreditado pela humanidade, que ergueu templos pra cultuar esse conjunto de imaginações judaicas...- Os dois casais, cada qual a seu lado, conversam sorridentes e simultâneos palavras que não chegam a mim.


- ...Interpretadas sob a visão platônica e aristotélica.. Há na história das religiões, da filosofia, doutrinas provavelmente falsas, que exercem um obscuro encanto sobre a imaginação dos homens. A doutrina do trânsito da alma permeia tanto o pensamento ocidental, platônico e pitagórico, quanto o pensamento oriental da Índia, China, de tribos indígenas brasileiras... É universal... – Abre as duas mãos como polvos submersos.


- Talvez porque Deus, esse personagem mitológico, seja criado à imagem e semelhança do homem, mas adicionado de seus sonhos. Um retrato do homem sonhado, um anti-retrato de Dorian Gray... - ...Chega uma garrafa de vinho na mesa da loira e do cigano.


- Um personagem que é eterno porque permite uma infinita e plástica ambiguidade. Não argumenta, e portanto, é infalível, não declara seu nome, e portanto é inalcançável, não racionaliza, como todo bom personagem que se incorpora à memória geral da espécie. – Estica os dedos das mãos como se estivessem dormentes.


- Por isso acredito em Deus, porque é o melhor personagem já criado. – Rimos juntos. - E nos ajuda a suportar a realidade... - A morena e Elvis bebem cerveja.


- Se não, a compreendê-la, mas pelo menos, suportá-la com esperanças. – Deixa a bengala escorada num canto da mesa.


- Mas o fato é que tentamos compreender a vida, o universo, com um instrumento bem precário que é a linguagem... - Os casais estão sentados de modo que as mulheres ficam de frente e os rapazes de costas um pra o outro.


- A linguagem não é um fato científico, mas artístico; foi inventada por guerreiros e caçadores e é muito anterior à ciência. – Entrelaça os dedos sobre a mesa.


- Inventada por um chimpanzé que enlouqueceu e ficou metido a besta! – Rimos juntos – E o pior é que pensamos, tentamos compreender as coisas por meio dessa linguagem. - Os casais bebem e conversam. – A morena e a loira cruzam olhares pela primeira vez... Bebo outro gole.


- Sim. Toda linguagem é de natureza sucessiva, não é apropriada pra pensar o eterno, o intemporal. E essa linguagem por sua vez contém instrumentos mais precários ainda, que no entanto o ser humano adora, é atraído, e acha um dos melhores pra sentir a verdade, que são as metáforas, esse contato momentâneo de duas imagens... Bem, não acha um dos melhores, mas sente institivamente a verdade por meio delas. – Estala os dedos.


- A Bíblia utiliza-se muito delas e faz sucesso há mais de dois mil anos. E é o maior best-seller de ficção no Ocidente. – O cigano lê o cardápio, parece que vai fazer um pedido.


- O que não quer dizer que não seja verdadeira ou real, mais que nós. Se os personagens de uma ficção podem ser mais profundos, mais humanos que seus leitores, nós podemos ser fictícios. – Coça o pescoço.


- Jesus, não o histórico, é outro grande personagem, um deus suicida... - ... As duas continuam se reparando... Bebo outro gole, acho que do quarto copo.


- Um deus que fabrica o universo pra fabricar seu patíbulo. Que se matou com uma prodigiosa e voluntária exalação de sua alma. – Espalma uma das mãos sobre a gravata, ajeitando o colarinho.


- Sabia que iam matá-lo, tinha poderes pra evitar, mas preferiu esse suicídio pela mão dos homens pra salvá-los. Mas salvá-los de que? De conviver com um deus na Terra? Eis o grande mistério da fé... - A loira toma um gole da taça de vinho tinto, passando a ponta da língua entre os lábios, enquanto a morena cruzava as coxas. Bebo um gole nervoso, esvaziando meu copo.


- E também seríamos fragmentos de um deus, que no princípio dos tempos se destruiu, ávido de não-ser. – Põe um dos cotovelos na mesa e escora o queixo na palma da mão.


- Então, aquela matéria inicial, que se explodiu no Big-Bang pra formar o universo, era Deus se suicidando pra dar origem ao mundo, mas talvez, ávido de ser múltiplos seres... – Dessa vez é a loira que cruza as coxas, enquanto a morena passa a mão entre a negra cabeleira. Tento encher meu copo, mas a cerveja acabou. Peço outra. Não consigo mais olhar pro Francisco, fico paralelo, ombro a ombro com ele.


- Ou isso... É pouco o que nossa mente consegue supor, então não podemos desperdiçar nenhuma conjetura.


- E voltando à linguagem, então, talvez a intuição e outros tipos de percepção sejam instrumentos mais eficientes pra se compreender o mundo. – O cigano pede algum prato pro garçom. Minha segunda cerveja chega.


- Bem, as mulheres que pensam muito intuitivamente, parecem compreendê-lo melhor.


- Principalmente quando estão grávidas e são mães. Sentem a vida com mais clareza, com mais força. – A morena se levanta e vai ao toalete. Cinco segundos depois, a loira se levanta e também vai. Dou uma bicada na cerveja.


- E nós homens só temos a arte.


- E corremos o risco de confundir a realidade com a arte. – Elvis está pedindo algo pra o garçom.


- Pode ser uma confusão, mas também pode ser uma coincidência. Se todo homem se identifica com determinados personagens, não pode ser uma confusão. Deve ser uma coincidência. Ou bem mais do que uma coincidência...


- Um personagem pode ser todos os homens... – A morena volta sinuosa requebrando, com um sorriso sutil.


- E portanto um homem pode ser todos os homens...


- Com os mesmos desejos, medos, sonhos, pensamentos, doenças... – A loira volta rebolando com um sorrisinho cínico.


- E como pode ser que não haja pensamento ou doença que não sejam voluntários...


- Todos somos um, ou os mesmos. Ou no mínimo irmãos muito parecidos... Abandonados pelos pais neste grande orfanato azul que é a Terra. Isso deveria nos dar um sentimento de fraternidade... – A morena se senta, cruzando as coxas longas, e ajeitando a liga da meia-calça branca.


- Sim. Mas também podemos ser o sonho de um outro ser, tendo em vista o caráter, o funcionamento, o mecanismo idêntico dos personagens e das coisas. O mundo pode ser um sonho. Alguém agora pode estar nos sonhando.


- Assim como o que sonhamos pode ser real... É pena que não possamos provar isso. - A loira se senta lentamente.


- Há uma conjetura, que considero perfeita, à qual supõe que um homem sonha que foi ao paraíso, onde lhe dão uma rosa, e quando ele acorda tem a rosa na mão.


- Bom, adolescentes costumam sonhar fazendo sexo e quando acordam tem a flor molhada... – Rimos. - Então a polução noturna é uma prova física de que o sonho foi real. – Ela cruza as coxas grossas...


- Sim, o paraíso é real! – Rimos os dois.


- Mas se também formos o sonho de alguém, não temos poder de mudar a vida, nem o universo, nem nós mesmos, e portanto, não temos livre arbítrio. – ...E ajeita as ligas negras da meia-calça transparente.


- E nem podemos fazer nada contra o tempo. Não podemos abolir nosso passado, verbi gratia.


- Somos prisioneiros dessa engrenagem universal, desse sonho. – Na mesa da loira, chega numa panelinha de barro fumegante uma moqueca capixaba.


- Encarcerados nesses corpos, nesses simulacros, perpetuando a imagem dessa imagem...


- Como um espelho na frente do outro? – Na mesa da morena, o garçom traz uma porção de acarajés quentes, recheados de vatapá e camarão frito.


- Sim. Infinitamente... Uma prisão de espelhos, um labirinto sem centro, que é o presente.


- Mas não podemos dar uma espiadinha no outro lado, pelas fendas, pelas frestas desse sonho, pelos buracos da fechadura dessa prisão? – Olho embaixo das mesas da loira e da morena. Bebo mais um gole.


- Penso que sim. É isso que venho tentando fazer durante toda minha vida... Tentando espiar de curioso. A memória pode alterar ou fantasiar o passado, assim como a imaginação pode alterar o futuro. Mas estamos presos ao presente que é inalterável e muito grande. E por outro lado, podemos sentir o passado e pressentir o futuro, mas o presente escorre entre os dedos, e quando achamos que o estamos sentindo, é porque ele já é passado.


- Então se não existe presente, talvez não exista o tempo... E talvez a morte seja uma fresta um pouco maior... – Um menino passa vendendo “amendoim torrado, salgado e quentinho” em cones de papel dentro de uma lata aquecida por brasas acesas em sua base. Compro um cone com minhas últimas moedas.


- Assim como os nossos sonhos ou os pesadelos... E nas frestas, vemos o olho de Deus...


- Falando em sonhos, há tempos carrego comigo a intuição de que tudo o que qualquer homem sonha ou sonhou um dia se realizará. – Tanto o Cigano quanto Elvis se debruçam ferozmente sobre suas porções, enquanto a loira e morena apenas beliscam e mordiscam as guloseimas. Jogo um bago crocante na boca.


- Pode ser. Os homens que imaginaram a chegada do homem à lua, como Wells e Verne, achavam impossível esse feito. E menos de 30 anos da morte de Wells, isso foi conseguido... Por isso acho o maior feito da humanidade no século 20.


- Por confirmar que todo sonho se realizará... Pelo menos os grandes sonhos, os sonhos gerais, universais, comuns da humanidade... – As duas continuam se flertando, enquanto os rapazes só dão atenção pra seus pratos e suas bebidas. Mastigo mais uns grãos salgados de amendoim e dou mais um ou dois goles na cerveja.


- Não há homem que não seja hoje o que será...


- Ou que não sonhe hoje o que não será... Assim como tudo o que ele sonha ou acha que foi, ele é. – Os rapazes limpam seus pratos e a loira olha pro nosso lado. Trinco mais um amendoim entre os dentes.


- Mas essa conversa é infinita, seria boa pra a eternidade, e eu tenho muito pouco tempo por aqui. Mas espero que você continue discutindo, evoluindo esses pensamentos, assim pelo menos, parte do homem que fui continuará vivendo, assim como eu continuei meus predecessores...


- Claro que sim. O senhor daria um ótimo personagem pra a memória coletiva da humanidade. – O garçom recolhe os pratos das duas mesas.


- Bem, até o subconsciente deu um personagem famoso e uma nova mitologia, não é?


- Não sei se sobrou nada por inventar... – A morena também olha pro nosso lado.


- Isso não é essencial, mas ainda existe uma infinita imensidão de espaços e ideias que ignoro e me ignoram.


- Eu já imaginei que cada átomo encerrasse um universo, assim como o nosso estaria contido num átomo de outro universo... – A loira puxa um cigarro, o cigano acende e ela começa a fumar com volúpia.


- Acho que Pascal imaginou isso antes.


- Tá vendo? Tudo já foi pensado! – A morena também tira um cigarro.


- Por outro lado, há quem diga que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que uma floresta outonal... E que mesmo dentro de um vendedor de amendoim possam estar todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo.


- ...Todos os sonhos da carne e da alma... Talvez a culpa dessa frustação de parecer estar sempre repetindo o que outros pensaram ou sentiram seja da escrita. - Peço um cigarro ao garçom.


- É verdade que nem Buda, nem Sócrates, nem Jesus, jamais escreveram uma palavra. Talvez estivessem pensando nisso.


- E Kafka queria queimar seus escritos... Mas tiveram discípulos, amigos traidores que foram lá e escreveram, conservaram o que disseram. – O garçom traz o cigarro e acende.


- E a humanidade deve muito a esses santos traidores! – Sorri. – Mas não se preocupe, todo o homem que nasce é sempre o primeiro, nasce com a mesma sede e a mesma fome de Adão.


- Ainda vivemos o momento em que o homem ainda tem fome e se alimenta da Árvore da Sabedoria. Cada homem é o mesmo homem que viveu há quatro mil anos atrás. O que os difere é o habitat e o tempo. Ainda somos Adãos. Mas nunca vamos superar essa fase? – As duas trocam sorrisinhos e dou uma prazerosa tragada.


- Talvez porque sejamos o mesmo personagem de um único livro, conforme o tratado de Sefer Yetsirah.


- Escrito por Deus... – A loira faz anéis flutuantes de fumaça. Dou mais uma tragada e uma bicada na cerveja.


- Que se utilizou de vinte e duas letras fundamentais, desenhando-as, combinando-as, produzindo tudo o que é e tudo o que será.


- Então todo o universo seria um livro, no qual cada astro, cada natureza, cada ser, cada coisa, cada forma é uma palavra, um parágrafo, um capítulo... Daí uma das formas de decifrá-los seria a metáfora. – Elvis pergunta num tom que consigo ouvir, pra quem ela sorri tanto e tanto olha pra trás.


- Não é à toa que grandes líderes religiosos e filósofos falavam e escreviam por metáforas... Mas já disseram que o universo, o abismo das estrelas e tudo no mundo sejam apenas reflexos, um espelho das nossas almas.


- Logo se vemos misérias no mundo é porque estão dentro de nós... E também se vemos estrelas, belezas... – No instante que o Elvis olha, o Cigano que o tinha ouvido também olha pra trás.


- Podem estar dentro de vários, ou apenas de um homem, que pode ser um anônimo, um engraxate que anda por aí... – Os dois se encaram.


- Então caberia a cada homem eliminar as misérias que existem dentro de si pra melhorar o mundo... – O Cigano de cara amarrada pergunta ao Elvis alguma coisa que não ouço.


- Ao invés de ficar esperando que o Estado ou os políticos façam isso... – Sorri.


- Mas estamos perdidos dentro de nós mesmos. Todos os passos que dei na vida até hoje, todos os pensamentos que tive deixaram um rastro dentro de mim que formam um labirinto... – Elvis retruca perguntando alguma coisa.


- Ou uma figura geométrica... Mas nenhum homem conhece essa figura, ou seja, não sabe quem é.


- Por isso, ao invés do “conhece-te a ti mesmo”, seria melhor conhecer o teu vizinho... Ou, melhor, a tua vizinha mais bonita... – Rimos. As duas trocam olhares enigmáticos.


- Mas há homens reais que parecem não ter sido escritos por um deus, mas por outros homens... O Hitler, horrendo em exércitos públicos e espiões secretos, é um pleonasmo de Carlyle. Os alemães foram os mestres do horror no século dezenove... Lenin, uma transcrição de Karl Marx.


- Achava o Hitler, um subproduto da obra de Nietsche... Aquela ideia do super-homem que o Hitler tentou implementar...- Os dois rapazes se levantam e discutem.


- Enquanto o povo queria, sonhava com um herói. Aliás Carlyle escreveu em 1843 que a democracia é o desespero de não encontrar heróis que nos dirijam.


- O Herói, esse grande personagem que rivaliza com o Deus, afinal é um semideus. – O cigano joga uma taça de vinho na cara de Elvis.


- E o nazismo não triunfou porque não convencia literariamente. Os homens mataram e morreram por ele, mentiram por ele, mas ninguém no íntimo queria que ele triunfasse. O Hitler quis ser derrotado.


- Sempre achei isso, pois cometer o mesmo erro do Napoleão, invadindo a Rússia num dos piores invernos da história, sendo um fã do Napoleão... É uma das provas. Outra é que ele poderia ter se apossado das reservas de petróleo do Oriente Médio e ter vencido a guerra. Uma estratégia óbvia que não tentou. Cometeu uma série de atos, que sabia que o levariam à morte, à derrota. – Elvis revida, jogando um copo de cerveja na cara do outro.


- Mas talvez o Hitler fosse tão fã de Napoleão que queria vingá-lo dos russos. Uma vingança histórica.


- Talvez o mais importante pra ele fosse a vingança contra os russos, os judeus, o fato de ter sido humilhado, escarnecido na primeira guerra... – O cigano dá-lhe um soco e Elvis cai sobre a mesa.


- Como o é pra a maioria dos homens a vingança, essa vaidade... Mas se a literatura antecipou, premeditou esses homens, também já profetizou algo que ainda está no futuro: o esquecimento de sangues e nações, a solidariedade do gênero humano.


- E já eternizou momento... Penso que o homem tem de eterno é tudo o que imaginou, pois isso não possui matéria e, portanto, está imune ao tempo. Portanto, é indestrutível. – Elvis se levanta, quebra um casco de cerveja de baixo pra cima na borda mesa e parte pra cima do outro.


- O Nada budista também é indestrutível e eterno, pois está fora do tempo.


- Já eu acredito no Tudo. Creio, por exemplo, que a emoção uma vez sentida não se esvanece. Soma-se às outras e se transforma noutra coisa: O que somos. Então nunca perdemos nada ou ninguém, porque esse algo ou alguém são sensações nossas, que se amalgamam a outras e formam o que somos no presente. O menino que fui, o adulto que sou e o velho que serei estão aqui, agora. – O Cigano saca uma adaga escondida.


- Só se perde realmente o que não se teve... E você pode desfrutar ainda de suas felicidades de menino, pois a felicidade de hoje não é mais real que a felicidade pretérita.


- Nem menos atual. E não somos mais reais ou mais atuais que os mortos de cem anos atrás, pois estamos dentro da mesma infinitude do tempo. E também por que daqui a cem anos, todos os vivos de agora estarão tão mortos quanto os de cem anos atrás... Se não haverá diferença na eternidade, então não há agora, pois somos um átimo dela. – Os dois ficam se estudando, enquanto as pessoas vão abandonando as mesas.


- É, o tempo é uma delusão... A indiferença e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje bastam pra desintegrá-lo. E se o tempo é um processo mental, como podem compartilhá-lo milhares de homens, ou mesmo dois homens diferentes?


- Talvez não compartilhem. Por isso, morremos sozinhos, por isso divergimos tanto, não nos encontramos quase nunca, quase nunca nos sentimos, nos amamos de verdade... Vivemos presos no nosso universo particular que mal pode se comunicar com os outros. – Muita gente vai embora sem pagar, outros deixam dinheiro nas mesas e também vão embora.


- E aquele que mata um único homem, destrói um mundo... Por outro lado, a vida contêm elementos e processos muito simples, então é pobre demais pra não ser também imortal...


- Não sei se entendi, mas posso chegar à mesma conclusão por outro caminho. A ciência de hoje prova que os seres humanos são combinações de vários genes, combinações de personalidades, de seres ou de alma, como queiram. Essas combinações não são infinitas e tendem a se repetir. Então já existiu alguém idêntico a mim e voltará a existir no futuro. - Os dois contendores se acertam estocadas nos braços.


- A outra vida estaria dentro da própria vida...


- Sim, pois uma outra vida depois da morte seria o próprio inferno. Nada após a morte seria o paraíso... – O garçom grita que já chamou a polícia. É a deixa pra as últimas pessoas que sobravam (provavelmente cocinômanos de banheiro) irem embora.


- Vou morrer e o mundo continuará sem mim... Por que nos lamentamos desse tempo infinito posterior à morte, e que não será nosso, se não nos lamentamos do tempo infinito anterior a nossa morte, que também não vivemos?


- Eu lamento! O que me faz mais penar, e me traz pesar, é menos o tempo que não serei após a morte, mas todo o tempo que não fui antes de nascer. Queria ter vivido o Egito antigo, a Grécia antiga, todos os tempos do passado. E creio que posso ainda senti-los. Quero acreditar que não existe imaginação, que tudo é memória, passada ou futura. E se imagino que vivi naquela época, estou lembrando o que vivi, seja no passado, seja no futuro. – Os dois contendores giram como um rodamoinho derrubando cadeiras, mesas, garrafas e copos. As moças me olham com uma expressão de pedido de socorro.


- Os sonhos que agora tens foram causados pelos milhares de inextricáveis fatos que os precederam...


- E que os sucederam... Ao ler sobre história, tenho a sensação de que já vivi aquilo, assim como quando leio ficção futurista. – Os brigões giram em torno de nós, muito próximos.


- Talvez tenha vivido ou viverá mesmo. Uma prova disso pode ser o nosso idioma que permaneceu e permanecerá quase o mesmo nos tempos. Se cada momento fosse realmente novo, as palavras seriam novas...


- As palavras são as mesmas, os pensamentos, os mesmos; os sentimentos, os mesmos... Por isso acredito que o fato de se ter uma ideia original antes de todos não quer dizer nada... – Policiais de uniforme marrom chegam, apartam e levam os dois, algemados.


- Sim. Um escritor que escreveu algo já pensado anteriormente, mas que ele nunca lera, valerá mais que o antecessor dele, se conseguir escrever melhor... A linguagem é poesia fóssil.


- E a fala cotidiana é quase sempre uma declamação coletiva e repetida automaticamente de poemas úteis, inexpressivos e sem beleza. E o resultado dessa declamação é a humanidade. – Os garçons descem as portas de aço. Todos os bares se fecham. O lugar fica semi-deserto, à exceção das duas mulheres de pé, ainda assustadas, e de nós, é claro.


- Talvez se falássemos somente por metáforas, nos entenderíamos melhor e humanidade seria outra. Isso se a metáfora consistir em expressar os vínculos secretos entre as coisas.


- Seríamos todos Jesus. – Elas se entreolham e resolvem se sentar na mesma mesa. Ainda sobrara vinho.


- Se falarmos como ele, pensarmos como ele, portanto, sentiremos como ele e seremos ele. Então os cristãos deveriam ensinar principalmente as crianças a falarem como Jesus, seria o primeiro passo. As crianças aprendem facilmente o que recebem e conservam pra sempre. Assimilam em cera e conservam em mármore.


- Isso pra os cristãos, mas pra quem não é... Existem milhares de outras alternativas, ou seja, outras bibliotecas, além da Bíblia, outros personagens, além de Jesus, Deus, Buda... - As duas bebem e fumam. Eu dou mais uma tragada e bebo ouro gole.


- É, a Bíblia é uma pequena biblioteca de textos de autores com estilos completamente diferentes, de tempos distintos, mas as pessoas acreditam que foi escrita pelo personagem principal, ou seja, o Deus... – Rimos juntos.


- Pois é, os gregos e romanos, que acreditavam e se espelhavam em outros personagens, tinham uma outra moral, uma outra vida sexual, por exemplo... - Elas começam a se descontrair. Os ecos de suas falas se misturam às nossas no saguão do Arcângelo.


- Talvez o sucesso da literatura, da mitologia cristã em detrimento da greco-romana, seja o fato do cristianismo ter proposto uma nova ordem social, onde os mais fracos, os mais humildes tivessem vez, fossem protegidos pelo Estado, ao contrário da Roma Antiga, onde os mais fortes e poderosos escravizavam os mais fracos... Seria uma religião de escravos, conforme afirmou Nietsche.


- Mas fico imaginando se nossa sociedade tivesse adotado outras mitologias... O Brasil, por exemplo, se ao invés da Bíblia, seguisse a mitologia dos índios que aqui habitavam... - Embaixo das mesas delas, o pé de uma roça a perna da outra. Olho pra trás, pros lados. Não há ninguém além de nós.


- Bom, o ser humano tem a liberdade de escolher o que seguir, em que acreditar... Só que primeiro ele tem de se libertar da crença de que só exista um livro a seguir, ou de que só um livro contenha a verdade.


- E passar a ver que existem tantas outras opções e mais aquelas que qualquer um puder inventar... Bem, existe a quase infinita literatura... - Elas começam a se beijar, afagando-se os cabelos negros e loiros.






- Mas a maioria se abstêm dela, não é? São ascetas que se abstêm da literatura, masoquistas que se castigam não se sabe por que motivo. A literatura é uma das poucas formas de felicidade existentes, e abster-se dela é uma das muitas formas de estupidez...


- As pessoas precisam da certeza pra viver, da verdade, da segurança de uma certeza, de uma tábua de salvação nesse oceano de dúvidas... - Vagarosamente elas apertam as mãos nos bustos uma das outras. Meu coração dispara.


- E ignoram que a dúvida é um dos bens mais preciosos do homem. Ou seja, a incerteza é um bem, a insegurança é um bem.


- E da dúvida é que nasce o diálogo, se não houver ninguém do outro lado se defendendo com a armadura de uma certeza. - Começam a tirar os vestidos. Olho desesperado pros lados. Ninguém. Francisco parece não perceber nada. Meus lábios umedecem.


- Sim. Só assim pode existir o diálogo. O senhor já deve ter observado que somente o judeo-cristianismo-islamismo produziu guerras religiosas.


- Vide a guerra entre os leitores dos livros de Israel e de Maomé... São duas certezas se confrontando, não há dúvida, não há diálogo, apenas dois monólogos se atacando... – Elas ficam nuas, mas não retiram as joias brancas e douradas. Não tiram as alianças de casamento... Só então percebo que os jovens presos eram seus maridos.


- E como são religiões baseadas na ideia de inferno e céu, ou seja, castigo e recompensa, castigam-se uns aos outros, esperando uma recompensa nos céus. O que é uma imoralidade, já que essas religiões funcionam no esquema de punição ou suborno, inferno e céu...


- Daí surgirem aberrações como homens-bombas que esperam ser recebidos por virgens no céu, e soldados que bombardeiam crianças, acreditando agradar ao Deus. - Vejo nascerem nádegas lunares, brotarem botões róseos de seios. Bebo nervosamente meu último copo de cerveja.


- Não julgam seus atos em si, julgam pelas suas consequências, o que é uma imoralidade... Pelo castigo ou suborno que esperam deles...


- E assassinar crianças é absolutamente ruim, não há consequência, por mais complexa que seja, que justifique isso...- Uma escultura de corpo de mármore se entrelaça a outra de cobre. Dou uma profunda tragada em meu cigarro.


- E o pior é que os executantes dessas ações são inocentes... Quem explode o próprio corpo, acreditando ser recebido por virgens no céu... É muita inocência ou muita burrice... De modo que eu penso que, na verdade, existe inocência e ignorância na maldade e inteligência na bondade. A inteligência leva à bondade...


- E muita malandragem dos líderes desse ódio, em ambos os lados. Eles sabem que se Israel e Palestina fizerem as pazes pra sempre, eles perdem o poder pra sempre, os privilégios... Esses líderes que se dizem inimigos, precisam um do outro. Quando as coisas estão muito paradas, um deve ligar pro outro pra combinar algum ataque mútuo. – Rimos. Elas se abraçam e se beijam ajoelhadas.


- Por isso acho essencial que, por mais certos que acreditemos estar, sejamos suficientemente humildes pra tentar evoluir, aprender, repensar nossas certezas, melhorar-nos enquanto homens. Não existe nenhuma evolução ou revolução possível numa sociedade se cada indivíduo não melhora.


- Sim, porque os chefes, os políticos, aqueles que detêm algum tipo de poder são indivíduos. Então o político deve se abster da corrupção, os alunos têm de procurar ser mais dedicados, os pais tem de procurar educar melhor seus filhos, o viciado tem de deixar de usar drogas, o cidadão, de querer levar vantagem em tudo... E talvez se algum grupo social começar isso, influencie os demais, as multidões... As multidões são mais manejáveis, mais modificáveis, porque são mais simples que os indivíduos. – Elas estendem os vestidos no chão e se deitam.


- Um país construído exclusivamente de espertos, onde cada um pensa em sua fortuna pessoal e em seu destino pessoal, o resultado é a ruína geral... –


- A derrota geral... Mas acabamos descambando pra a política. – A morena começa um beijo, que vai escorrendo pelos lábios, queixo, pescoço da loira.


- A beleza é uma forma de medo ou inquietude...


- Hem?! O que o senhor disse?! – E os beijos escorrem do pescoço pra os rosados seios em flor.


- Se não me dissessem que era o amor, eu teria pensado que era uma espada nua...


- O senhor está vendo o que estou vendo? – E vai beijando o ventre níveo da outra... Depois invertem-se...


- O hálito da manhã envolve a floresta negra, enquanto a bruma noturna umedece a dourada floresta de outono... Um cego só enxerga por imagens literárias, meu caro. Por isso, a literatura é mais real pra mim que a realidade. - Francisco se despede num aperto de mão e volta andando lentamente com sua muleta pra dentro do Sebo, como um velho tigre pra sua gruta, até desaparecer na escuridão profunda.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O JULGAMENTO DO GOLEIRO BR.



O JULGAMENTO DO GOLEIRO BR.


ATO UM


CENÁRIO: Um escritório de advogados deserto.

(Milene, uma jovem secretária, abre a porta. O Dr. Geraldo Gallo e o jovem Goleiro Barbosa entram. Geraldo Gallo é um advogado de uns 50 anos, um pouco vacilante, bajulador dos clientes e irritadiço com as demais pessoas. Barbosa aparenta uma tranqüilidade medida mas está desconfiado. Milene fecha a porta sem tirar os olhos de Barbosa. )
Dr. GERALDO GALLO (alisando o cabelo penteado para trás com gel): Sente-se, Sr. Barbosa. Boa-tarde, Milene. (Barbosa não se senta)
MILENE (mascando um chiclete e ajeitando os cachos de um penteado oxigenado à la Marylin Monroe): Boa-tarde, Dr. Geraldo Gallo. O Zé... O Dr... Como ele se chama mesmo?
Dr. GERALDO GALLO: O Juiz, Milene, o Juiz de Direito...
MILENE: Pois então, o Juiz ligou e disse que tá chegando. Mas vou ligar de novo, falando que o senhor já tá´qui com o famoso goleiro Barbosa! ...do mengão... (abaixando a voz no final, repreendida pelo olhar do advogado)
Dr. GERALDO GALLO (ajeitando os óculos): Com o Sr. Barbosa de Souza Soares! Obrigado, Milene. Temo que o Juiz possa se atrasar, ele é um homem muito ocupado, muito requerido por ser muito respeitado no Tribunal. Deve ser o próximo Desembargador a assumir...Mas ele já sabe que é para você, Sr. Barbosa, e a causa é urgente. Como vai o marido, Dona Milene?
MILENE: Aquele lá, já mandei passear, estou solteiríssima... Obrigado por perguntar, Dr. Geraldo Gallo. (em tom irônico, depois sai requebrando)
(Dr. GERALDO GALLO senta-se. BARBOSA está com os braços cruzados atrás das costas)
Dr. GERALDO GALLO (levantando-se e apontando uma cadeira): Sente-se, Sr. Barbosa.
BARBOSA: Obrigado — eu fico de pé. Eu — tô meio ansioso.
Dr. GERALDO GALLO: É que a conversa pode demorar... (Barbosa senta-se)
MILENE: (Entra e fala com Dr. GERALDO GALLO , mas encarando BARBOSA que se sentou.) Os senhores aceitam algo para beber? Tem um cafezinho que saiu agorinha.
BARBOSA(olhando de cabeça baixa para a saia curta da secretária): Eu vou aceitar...
Dr. GERALDO GALLO: Não, Milene, o Juiz deve estar quase chegando.
BARBOSA: (sorrindo sem graça para MILENE.) Então é melhor não. (ela sorri também e sai.) Eu num tô acreditando que é comigo que isso está acontecendo. Parece novela de tevê. (tapando o rosto com as mãos)
Dr. GERALDO GALLO (acenando com a cabeça): Sim, eu sei como é.
BARBOSA (levanta-se): Pô, que situação idiota...
Dr. GERALDO GALLO: Idiota, Sr. Barbosa?
BARBOSA: É mermo. Porra, eu sempre fui um sujeito tranqüilo — que se dá bem com as pessoas, sabe como é. Não sou do tipo de sujeito que faz — sei lá, coisas violentas. (Pausa.) Bem, acho que no fim eu vou rir disso tudo, né não? Quer dizer, ninguém é condenado neste país com um bom advogado... Quer dizer, por coisas que não fez, né não?
Dr. GERALDO GALLO: O nosso judiciário, é, muito complexo. Pelas vias formais é difícil de lidar. Ainda bem que existem outros caminhos...
BARBOSA: Mas teve um caso daquele — como é o nome dela? — Suzane Riche.... Eu tava lendo outro dia. E aí deram ela um indulto... Aí saiu foto dela na imprensa e ela voltou pra cadeia... Isso é que não entendo... Deram e depois tomaram a liberdade condicional... muito esquisito — alguém ser perdoado e depois voltar pro castigo.
Dr. GERALDO GALLO: São os meandros do Direito. O advogado dela fez um bom trabalho, mas fatores extra...
BARBOSA: (Sentando-se novamente.) Pois pra mim continua sem muito sentido.
Dr. GERALDO GALLO: O importante é que ela já conseguiu a condicional uma vez. Depois consegue de novo.
BARBOSA: É. Enquanto a imprensa não descobrir... Eu devia era fugir do Brasil, enquanto é tempo... Ir jogar lá na Rússia...
Dr. GERALDO GALLO: Vamos, Sr. Barbosa, fique tranqüilo, o senhor terá a melhor defesa possível.
BARBOSA: (estalando os dedos da mão em seqüência.) Eu sei, eu confio no Sr. É que... Tou meio tenso.
Dr. GERALDO GALLO: Bem, eu te garanto que pode relaxar. O Juiz deve estar chegando. O senhor conta-lhe a história toda, igualzinho que a gente combinou. Ele vai ver que o senhor é inocente, vai aceitar o caso e aí é um abraço.
BARBOSA: Ok, então.
Dr. GERALDO GALLO: Enquanto isso, vamos repassar alguns detalhes. Pelo que compreendi, no momento o senhor tem tudo aplicado em bens imóveis?
BARBOSA: É, mas tenho algum dinheiro guardado. Não é muito, mas se o senhor pudesse dizer quanto vai precisar...
Dr. GERALDO GALLO: Ora, eu não estou pensando em — hum — honorários.
É apenas uma formalidade, uma pergunta de praxe. As suas condições atuais. Não é para mim, o senhor sabe... Os meu parco honorário já está acertado (chegando ao pé do ouvido de Barbosa e sussurrando) É para ele... (apontando com o polegar para a porta). Vamos direto ao ponto: Quanto o senhor tem em espécie, líquido? Sem estar em conta de banco...
BARBOSA: (Desconfiado, com dúvida na voz). Uns setecentos mil... Mas agora tou desempregado né? O Flamengo vai rescindir o contrato....
(Entra o JUIZ J. trazido por MILENE. JUIZ J. mostra indiferença aos presentes, está usando seu paletó e uma toga, como se acabasse de sair de um júri. MILENE ajuda-o a tirar a toga e sai.)
JUIZ J.: Olá, Gallo.
Dr. GERALDO GALLO (levantando-se): Ah, Excelência.
JUIZ J.: Milene lhe disse que eu estava em um julgamento no Tribunal? O Promotor estava dificultando hoje.
Dr. GERALDO GALLO: Este é o Sr. Barbosa. Barbosa esse é o Juiz J. de que te falei. Por ora, vamos manter o nome dele em sigilo absoluto.
BARBOSA(tímido e com receio): Como vai o senhor?
JUIZ J.( em gestos largos): Quem não conhece o goleiro Barbosa? Apesar de eu ser vascaíno... Como está, Barbosa? Não quer sentar-se? Como vai a família, Gallo?
Dr. GERALDO GALLO: A mulher pegou, de leve, essa gripe H1N1.
JUIZ J.: Puxa vida!
Dr. GERALDO GALLO: É. É um perigo. E o caso? Ganhou de novo Juiz?
JUIZ J.: Só para variar. De goleada
Dr. GERALDO GALLO: Você adora bater no o Promotor Xis, não é?
JUIZ J.: Ah, porque ele é o melhor que tem! Mas ainda assim é fraco para mim. Hoje ele quis endurecer o jogo.
Dr. GERALDO GALLO: E você o deixou falar, hoje?
JUIZ J.(de pé, gesticulando como um advogado num tribunal do júri): Como sempre. Nego todos as objeções dele, aceito todos os protestos da defesa, ele fica uma arara de raiva e acaba se perdendo. Mas é o promotor mais competente de todas as Minas Gerais, e só precisava jogar no nosso time... Se bem que aí nem precisaria ter jogo... Mas, vamos a um novo trabalho.
Dr. GERALDO GALLO: Certo. Eu trouxe Barbosa aqui porque é uma pessoa especial e sei que o senhor não pega caso de qualquer um. Se Vossa Excelência tiver um tempo na sua agenda. O caso é de urgência urgentíssima!
JUIZ J.: Ah, é?
BARBOSA: Minha mulher acha que eu vou ser preso.(Constrangido.) Ela é bem mais instruída do que eu — e vai que tenha razão.
JUIZ J.: Preso por quê?
BARBOSA: (Mais constrangido, engolindo a seco.) Bem — por assassinato.
Dr. GERALDO GALLO: É o caso da Srta. Ronalda Domingues. É possível que tenha visto as reportagens nos jornais. (JUIZ J. acena com a cabeça.) Era uma atriz de filme pornô, que dizia que você era o pai do filho dela e que está desaparecida. (Para BARBOSA.) Não é isso?
BARBOSA: É. É uma coisa que acontece a toda hora, hoje em dia. O golpe da barriga em jogador famoso... E então, no outro dia, os jornais publicam que a polícia estava à procura no sítio do goleiro Barbosa, que eu tinha convidado a Ronalda para o sítio. Então, eu recebi uma intimação e uns amigos me indicaram o Dr. Geraldo Gallo.
JUIZ J.(anotando num bloco): Eles o convocaram dentro dos conformes?
BARBOSA: Não sei dizer... Quer dizer, eles disseram que eu tinha o direito de ficar calado, mas se eu ficasse calado, eles anotariam e depois isso seria usado no tribunal. Isso era uma ameaça?
JUIZ J.: (Mais para Dr. GERALDO GALLO .) Bem, agora já foi. Mas a gente dá um jeito.
BARBOSA: Bom, aquilo tudo pra mim era uma grande palhaçada. Eu disse algumas coisas e eles foram muito legais, e pareciam satisfeitos, e tudo o mais. Quando eu cheguei em casa e contei a Elza o caso — quer dizer, à minha mulher —, ela ficou danada. Ela me disse que acontecesse o que fosse, sempre estaria do meu lado para o que der e vier. Parece que ela achava que eles tem certeza de que fui eu. Ou querem que seja eu, porque eu sou famoso e aí eles aparecem na mídia por tabela. Então procurei o Dr. Geraldo Gallo, que me contou da amizade com o senhor. Acho que o senhor pode me dizer o que fazer nessa hora.
JUIZ J.(como se estivesse interrogando um réu): Conhecia bem a Srta. Domingues?
BARBOSA: Claro. Ela foi numa festa em meu sítio... Foi dali que começou essa história de dizer que o filho é meu. E quando vi no jornal que ela tinha sido morta, quer dizer, desaparecida sabe, fiquei p. da vida, porque na verdade eu não queria mal pra ela.
Dr. GERALDO GALLO: Conte ao Juiz J., do jeito que me contou, sem tirar nem por, (mudando para um tom mais formal) o modo pelo qual travou contato com a Srta. Domingues.
BARBOSA: (Obedientemente.) Bem, foi numa festa na casa de um goleiro reserva do flamengo. A gente contratou umas garotas para animar a noite e eu conheci a Ronalda. Aí eu gostei do serviço e saímos mais uma vez... Sabe como é, né?
JUIZ J.(segurando o queixo, como se fizesse uma pergunta inteligente): E ela ficou agradecida?
BARBOSA: Ah, sim, parecia muito agradecida. Agradeceu muito e tudo o mais. Dava até para pensar que ela tinha acertado na sena, tão feliz que ficou.
JUIZ J.: Mas não houve, na realidade, algo assim como acertar na sena? Ou seja, uma grande soma em dinheiro que ela precisava e o senhor desembolsou?
BARBOSA: Não. Nada demais. Eu pensava que nunca mais ia vê ela...
JUIZ J.: Charuto? É um cubano legítimo, que um general cubano me deu de presente...
BARBOSA: Não, obrigado; eu não fumo... Mas, por coincidência, dois dias depois eu encontrei ela em outra festinha. Ela virou, me reconheceu, nós começamos a conversar e ela acabou me convidando para dar um passeio no outro dia.
JUIZ J.: E o senhor foi?
BARBOSA: Fui. Ela insistiu pra eu marcar um dia e achei que não ir era coisa de amarelão. Não era coisa de homem recusar mulher. Sempre tem a pressão dos colegas, quando a gente comenta. E eu tenho minha fama de matador... Então eu disse que iria no sábado seguinte.
JUIZ J.: E ela foi visitá-lo em sua casa em... (Olha em seu bloco de anotações.)
Dr. GERALDO GALLO: Cruzeiro do Sul.
BARBOSA: Isso.
JUIZ J.: Sabia algo a respeito dela quando saiu com ela pela primeira vez?
BARBOSA: Bem, para falar a verdade, nada, a não ser o que ela era atriz, tinha feito um filme. Mas disse que vivia sozinha e que não tinha amigos, nem parentes. Isso me animou porque tinha mais sigilo, né?
JUIZ J.: Ela vivia só?
BARBOSA: Isso...
JUIZ J.: O senhor tinha algum motivo para julgar que ela pudesse fazer o que fez? Engravidar e te acusar da paternidade do filho?
BARBOSA: Não, porque ela tinha muitos clientes ricos... Por que logo eu, pô?
JUIZ J.: E quanto a você?
BARBOSA: (Alegre.) Eu confesso que também sempre contratava muitas garotas igual a ela, já faz muito tempo. E nunca deu pobrema...
JUIZ J.(em tom moralista): Lamentável.
BARBOSA: É. Eu sei. Ah, o senhor quer dizer que a justiça vai pensar que eu era um galinha e transava sem camisinha?
JUIZ J.: (Sem graça e formal.) Bem, eu não usaria exatamente esses termos, mas, em resumo, sim, é possível que dissessem isso.
BARBOSA: Mas não é verdade, sabe? Eu sentia pena dela. Achava que ela fazia o que fazia para sobreviver. Minha mãe... (cortando o que ia dizer) Quer dizer eu fui criado por minha avó.
JUIZ J.: Você está falando de mulheres escoladas, espertíssimas. Pense bem, antes de compará-la com a sua avó. Sabe quantos clientes tinha a Srta. Domingues?
BARBOSA: Bem, eu não sabia, mas li no jornal depois que ela foi assassinada, quer dizer, desapareceu. Tinha cinqüenta e um na agenda.
JUIZ J.: Cinqüenta e um. (sussurrando para si mesmo) Boa idéia... O senhor considera isso um ganha pão, Sr. Barbosa. Mas duvido muito que a Srta. Domingues se considerasse uma pobre mulher.
BARBOSA: Mas não dá para chamar de puta, dá?
JUIZ J.(constrangido): Bem, vamos continuar. Visitava a Srta. Domingues freqüentemente?
BARBOSA: No início, umas duas vezes por semana, depois fui enjoando.
JUIZ J.: Já contou isso para sua senhora?
BARBOSA: Não, de jeito nenhum.
JUIZ J.: Por que não?
BARBOSA: Minha esposa é mãe de dois filhos meus. É uma mulher de respeito...
Dr. GERALDO GALLO: Continue, continue.
BARBOSA: Sabe, acho que a Ronalda ficou gostando um bocado de mim.
JUIZ J.: Está querendo dizer que ela se apaixonou pelo senhor?
BARBOSA: Ela só ficava me agradando, me paparicando, dizendo que me ama; sabe como é.
JUIZ J.: (Pausa.) Sr. Barbosa, o senhor precisa ter mais maldade... Ser mais cauteloso... não há dúvida de que a polícia pode te complicar... O que eles ainda não entendem é como o senhor, um jovem, de bom aspecto, casado, muito bem financeiramente, famoso, que poderia conquistar qualquer mulher famosa, ou rica da alta sociedade, foi se envolver com uma garota de programa com claras intenções de extorqui-lo.
BARBOSA: É, eu sei que vão dizer que ela andava atrás de mim por causa do dinheiro. Por um lado, sim. Mas por outro, acho que não era bem assim...
JUIZ J.: Bem, pelo menos o senhor é sincero, Sr. Barbosa. Será que poderia entrar mais em detalhes?
BARBOSA: Bem, não é segredo de que qualquer jogador de ponta ganha muita grana. Ronalda disse que precisava aproveitar uma oportunidade única de comprar um apê muito barato e me pediu um dinheiro emprestado.
JUIZ J.: O senhor lhe deu um empréstimo?
BARBOSA: Não, não dei. Achei muita grana. Pra mim acima de mil reais sempre foi muito dinheiro. Imagina 30 mil... Então dei um adiantamento, que ela ia pagar trabalhando. Mas ela nunca pagou... (interrompe, fica constrangido e muda de assunto) É claro que percebo — que as coisas não parecem muito boas para mim.
JUIZ J.: A Srta. Domingues sabia que o senhor era casado?
BARBOSA: Ah, sabia. Todo mundo sabe...
JUIZ J.: Mas não sugeriu que se separasse de sua esposa?
BARBOSA: Não. Ela — bem, ela parecia ter certeza de que minha mulher e eu não nos dávamos bem e não ia conseguir separar a gente.
JUIZ J.: E o senhor consegui passar isso pra ela?
BARBOSA: Ficou claro. Ela sabia que eu não queria nada sério... Mas às vezes eu fingia que queria, bem, pra ela não perder seu interesse por mim. Ela não queria exatamente arrancar dinheiro de mim, mas me pediu o adiantamento. Ora, é muito difícil de acreditar — mas ela não estava me sugando. Ela gostava de mim...
JUIZ J.: Quanto dinheiro a Srta. Domingues obteve do senhor, nesse tempo todo?
BARBOSA: Nenhum. Quer dizer só os R$30 mil, que seria um pagamento adiantado.
JUIZ J.: Fale-me a respeito do Sr. Manuel Francisco Garrincha.
BARBOSA: O Maca? É um amigo de infância, dos bons. Tem esse apelido porque quando joga bola, acerta mais as canelas dos outros do que a bola. A gente brinca que quem joga contra ele vai direto pra maca, daí o apelido. Mas é gente boa! Tem entrada e saída livre lá em casa. Toma conta do meu sítio muito bem, e tudo o mais, mas o pobre-coitado não podia nem pensar, com Ronalda por perto. Maca não gostava dela.
JUIZ J.: Por que não?
BARBOSA: Acho que era ciúme de amigo. Acho que ele não gostava que eu ajudasse a Ronalda .
JUIZ J.: Ah, então o senhor ajudava a Ronalda ?
BARBOSA: Ajudava daquele jeito. Pagando bem... Ela andava preocupada com umas dívidas.
JUIZ J.: E agora, Sr. Barbosa, vou fazer-lhe uma pergunta muito séria. E o senhor tem de responder com absoluta sinceridade... Depois disso tudo a Srta. Domingues, apareceu grávida, dizendo que o filho era do senhor. Em algum momento o senhor acreditou nisso e sugeriu aborto ou coisa parecida? (BARBOSA faz um gesto de indignação) Espere um momento antes de responder, Sr. Barbosa. Podemos supor que o senhor esteja dizendo a verdade e que foi enganado por aquela mulher, e se for pai daquela criança, poderemos argumentar que ainda assim o senhor não tinha motivos para assassiná-la, já que mesmo um pagamento de uma pensão a ela, não representava nada para o senhor em vista da sua fonte de renda. Há de perceber que essa argumentação oferece uma ótima linha de defesa. Agora o senhor deve demonstrar para nós, a opinião pública, sempre o desapego pelo vil metal, pelo dinheiro. O senhor nunca poderá repetir que mil reais é muito dinheiro, que 30 mil reais é muito dinheiro, e nem 250 mil é muito dinheiro, porque isso é o valor do seu salário mínimo. Se a mídia, a opinião pública, a promotoria, sentirem que o senhor é apegado a pequenas somas, eles vão alegar que o senhor matou a Ronalda , por causa de 30 mil, para não pagar uma pensão, para não gastar num processo de paternidade... Então, mentalize a partir de agora que 250 mil é um mês de seu salário mínimo! Isso é uma mixaria para o senhor! Entendidos?! (...) Agora, o que desejo é saber a verdade. Se quiser, pense com muita calma, antes de responder. Eu quero que o senhor me convença de que é inocente! Façamos de conta que o senhor está sendo julgado neste instante!
BARBOSA: Eu lhe garanto, Juiz J., que sempre agi com a maior correção e que o senhor jamais encontrará qualquer indício em contrário. Com a maior correção.
JUIZ J.: Obrigado, Sr. Barbosa. Fico muito aliviado. Faço-lhe o cumprimento de julgá-lo por demais inteligente para que cometesse uma besteira daquelas. E agora chegamos à noite de...
Dr. GERALDO GALLO: 09 de junho.
JUIZ J.: A Srta. Domingues foi convidada para ir ao seu sítio, nesse dia? BARBOSA: Não, para falar a verdade, não. Mas ela apareceu por lá de noite, mais ou menos às sete horas e quarenta e cinco minutos.
JUIZ J.: O senhor se encontrou sozinho com ela?
BARBOSA: Não. O Maca e meu primo trouxeram ela de carro. O Bola, meu segurança estava lá. Até a Ronalda estava lá. Quando ela chegou todos saíram e eu fiquei só com ela.
JUIZ J.: Isso não é muito bom.
BARBOSA: Por que não? Eu não podia conversar com ela na frente da Ronalda . O Maca não gostava dela, os outros ela nem conhecia...
JUIZ J.: Continue, por favor, Sr. Barbosa.
BARBOSA: Bem, ela chegou lá mais ou menos às sete horas e quarenta e cinco minutos. Ela disse que era para eu ver o bebê que era a minha cara, e tinha botado o meu nome, e queria conversar sobre o futuro dele e dela. Então chegamos num acordo. Ela ia sumir por uns tempos, até o escândalo ser esquecido e eu acertar minha contratação para a Europa. Em troca de uma fortuna de 500 mil reais, quer dizer uma pequena quantia de 500 mil reais... Então, eu tinha que voltar para o Rio e às dez horas, eu dei boa-noite e deixei ela lá e peguei a estrada.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor me disse que o Maca declarou que depois entrou na casa.
BARBOSA: É, ele me falou que quando entrou a Ronalda não estava mais lá.
Bem, eu não sei, eu já tinha ido embora.
JUIZ J.: E o senhor pode prová-lo, Sr. Barbosa?
BARBOSA: Claro que posso. Eu já estava na estrada, com minha mulher. Era isso que a polícia não parava de me perguntar. Onde é que eu estava às dez horas. A hora que ela desapareceu.
JUIZ J.: O senhor foi de carro?
BARBOSA: Fui. Em uma Rand Rover, verde escuro.
JUIZ J.: Alguém o viu voltando de carro?
BARBOSA: Além da Elza, só a Ronalda . Talvez alguém da portaria do condomínio. Isso é importante?
JUIZ J.: Seria uma vantagem se o vissem.
BARBOSA: Mas na certa o senhor não está pensando — bem, se ela morreu, ou melhor, desapareceu mesmo às dez, eu só preciso do testemunho da minha mulher, não é?
Dr. GERALDO GALLO: E sua esposa afirmará, sem sombra de dúvida, que o senhor estava na estrada nessa hora?
BARBOSA: Mas é claro que sim.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor gosta muito de sua mulher e ela do senhor?
BARBOSA: Elza gosta muito de mim. É a mulher mais
fiel que um homem poderia querer.
Dr. GERALDO GALLO: Compreendo. Seu casamento é feliz?
BARBOSA: Não podia ser mais. Temos dois filhos lindos. Elza é muito honesta, muito caseira. Gostaria que o senhor a conhecesse.
JUIZ J.: (Em voz alta.) Pode entrar.
MILENE: (Entra trazendo um jornal.) O jornal de hoje, Senhor Juiz.
JUIZ J.: Obrigado, Milene.
MILENE: Aceita um café, Doutor?
JUIZ J.: Não, obrigado. Ah, quer uma xícara, Barbosa?
BARBOSA: Não, não, brigado.
(MILENE sai alisando a saia com ambas as mãos)
Dr. GERALDO GALLO: Precisamos agendar uma conferência com a
sua esposa.
BARBOSA: O senhor quer dizer um bate-bola, uma mesa redonda?
Dr. GERALDO GALLO: Sr. Barbosa, o senhor está mesmo ciente da gravidade dessa situação?
BARBOSA: Estou. Claro que estou, mas parece — quero dizer, o que tem passado na tevê, eu vejo com os mesmos olhos de um assunto de futebol. Tantas vezes eles me crucificaram por causa de um gol que tomei, de uma declaração que eu dei, duma noitada que eu participei... E são as mesmas tevês, quase os mesmos repórteres, é muito parecido.... Só que nessas vezes eu dava minha versão e eles não podiam fazer nada de mal comigo. Agora me acusam de assassinato... Pra mim ainda não caiu a ficha, mas eu posso ser preso... Talvez por isso eu fique tentando levar numa boa, como se fosse uma partida ruim que eu fiz, e que tudo em ficaria em paz quando eu fizesse um bom jogo...
Dr. GERALDO GALLO: Não, infelizmente isso não faz parte do mundo esportivo. Isso é a realidade, meu filho.
BARBOSA: Mas, eu quero dizer, vai ficar tudo bem, não vai? Porque, quero dizer, se eles acham que a Ronalda desapareceu às dez, eu estava na estrada com Elza ...
JUIZ J.: Uma esposa como testemunha, sem nenhuma outra testemunha ou prova pode não é um álibi, Sr. Barbosa. É mais fácil ela entrar como cúmplice.
BARBOSA: Ah, o senhor quer dizer que iam pensar que Elza me ajudou a matar a Ronalda ?
JUIZ J.: É o mais provável, Sr. Barbosa.
BARBOSA: E ajudava mesmo, se fosse verdade! Só que neste caso não ajudou, porque sou inocente... O senhor acredita, não é?
JUIZ J.: Sim, acredito no senhor, Sr. Barbosa, mas não sou eu que tenho que acreditar. O senhor sabe, não sabe, que a Domingues deixou várias declarações dizendo que o senhor a ameaçava de morte?
BARBOSA: (Levanta-se.) Ameaça de morte? O senhor está brincando!
JUIZ J.: Não estou brincando, não. Está aqui neste jornal.
BARBOSA: (Lendo.) Mas eu nem acredito.
JUIZ J.: O senhor está surpreso?
BARBOSA: Pra mim isso é novidade...
Dr. GERALDO GALLO: O senhor está certo disso, Sr. Barbosa?
BARBOSA: Absoluta. 100%! Fico muito magoado com a ela, agora.
Não tou gostando do rumo das coisas. Eu ameaçar ela de morte?
JUIZ J.: Ela te deu bons motivos, isto é, é o que estão pensando... E o senhor me nunca a ameaçou. A Domingues nunca comentou nada a respeito de te denunciar por ameaça?
BARBOSA: De morte, não. Falou em processo de paternidade, em denúncia por agressão. Mas isso é brincadeira. Morte é coisa séria. O senhor acha que vão me prender?
JUIZ J.: Creio, Sr. Barbosa, que nessa altura o senhor deve estar preparado para tudo.
BARBOSA: Mas o senhor me tira fácil da cadeia, não tira?
JUIZ J.: Pode ficar tranqüilo, meu caro Barbosa, que vou dar uma atenção especial ao seu caso. Não se preocupe. Deixe tudo em minhas mãos.
BARBOSA: O senhor vai tomar conta de Elza, não vai? Quero
dizer, ela que cuida dos meus filhos.
JUIZ J.: Fique tranquilo, meu jovem. Não se preocupe.
BARBOSA: (Para Dr. GERALDO GALLO .) Há também a questão do dinheiro.
Tenho aquela quantia na mão.
Dr. GERALDO GALLO: Creio que poderemos organizar uma defesa adequada. É claro que um caso como esse não sai barato no Tribunal. Mas dinheiro é solução para você, não é problema...
BARBOSA (esfregando o rosto): Não caiu a ficha. Há pouco tempo, eu campeão brasileiro, o povo gritando meu nome na rua, me pedindo autógrafo. Todo mundo querendo tirar foto comigo. Agora, o mesmo povo me apontando o dedo, me xingando de assassino. Como podem mudar assim do dia pra noite? (Levanta-se novamente. Para Dr. GERALDO GALLO .) Eu não sei por que fazem tanta tempestade em copo d´água por causa dessa garota. Ela não era ninguém. Não tinha importância nenhuma. Não valia nada. Uma putinha barata... E eu, um ídolo de mais de 30 milhões de pessoas... Então ela some do nada, e minha vida pode ser destruída por causa disso? Por causa dela? Eu não acredito!
JUIZ J: A propósito do desaparecimento, o senhor ainda não me contou...
BARBOSA: É simples, ela saiu do sítio à noite, depois de receber o dinheiro, deixou o bebê com o Maca, dizendo que era para eu cuidar e sumiu. Por que não falam foi um roubo com seqüestro. Ou até suicídio? Por que preferem a pior versão? A que me incrimina?
Dr. GERALDO GALLO: A polícia deve ter boas razões para julgar que não se
trata de roubo, nem seqüestro, nem suicídio.
BARBOSA: A polícia tá é querendo aparecer às minhas custas... Hoje qualquer zé ninguém quer dá uma de famoso! Não sei para quê! (Entra MILENE.)
JUIZ J.: O que é, Milene?
MILENE: Desculpa interromper, é que tem dois homens atrás do Sr. Barbosa.
JUIZ J.: Da polícia?
MILENE: É!
JUIZ J.: Calma Barbosa. Pode deixar, Gallo, eu vou lá falar com eles. (Sai,
seguido por MILENE.)
BARBOSA: Puta que pariu! Meu Deus do céu! Já é hora? E aqui?
Dr. GERALDO GALLO: É o que parece. Fique calmo. Isso é normal, e nós já esperávamos e estamos preparados para isso. Não entre em pânico. Não dê nenhuma declaração — deixe tudo com a gente.
BARBOSA: Mas como é que me descobriram logo aqui, porra?
Dr. GERALDO GALLO: É óbvio que os policiais estavam te seguindo.
BARBOSA: Então eles tem certeza de que foi eu...
(Entram JUIZ J., o Delegado Antônio Lopes e o Detetive Romualdo com coletes da Civil. O DELEGADO parece mais um garoto propaganda ou o relações públicas da instituição)
DELEGADO: (Para JUIZ J..) Desculpe incomodá-lo, meu senhor.
JUIZ J.: Este é o Sr. Barbosa.
DELEGADO: O famoso Barbosa!
BARBOSA: É.
DELEGADO: Sou o Delegado Antônio Lopes. Tenho aqui uma mandado de prisão contra o senhor, sob a acusação de haver assassinado Ronalda Domingues no dia 09 de junho último. Devo avisá-lo que qualquer coisa que disser será anotada e usada como prova. O senhor tem o direito de permanecer em silêncio.
BARBOSA: Vamos lá com esse circo. E eu sou o palhaço.
GERALDO GALLO: Boa-tarde, Delegado Antônio Lopes. Meu nome é Dr. Geraldo Gallo. Vou representar o Sr. Barbosa.
DELEGADO: Boa-tarde, Sr. Dr. Geraldo Gallo. Perfeitamente. Agora nós vamos levá-lo e indiciá-lo. (BARBOSA e o DELEGADO e o DETETIVE saem. Para Dr. GERALDO GALLO .) O tempo tá fechando, tem muita nuvem escura, não é? A gente se vê mais tarde, não é? Espero não o ter atrapalhado nada...
JUIZ J.: O senhor jamais atrapalha! (O DELEGADO sorri e sai, fechando a porta.) Eu te digo uma coisa, Gallo, esse rapaz
está perdido e não sabe ainda...
Dr. GERALDO GALLO: Situação complicadíssima. O que achou dele?
JUIZ J.: Dinheiro traz felicidade, mas não traz inteligência. O coitado ainda está vivendo o sonho da fama. Não acordou ainda para o pesadelo que o sonho vai se transformar....
Dr. GERALDO GALLO: Você acha que foi ele?
JUIZ J.: Sei lá. Sem analisar as provas, eu diria que não. Concorda?
Dr. GERALDO GALLO: Concordo.
JUIZ J.: Bem, então ele já começou bem. Pelo menos a gente acredita nele. Mas nunca ouvi história mais fraca que a dele. E é por isso que eu acho que ele diz a verdade. Vamos ver como a gente melhora ela. O único álibi do moço é a esposa — e quem é que vai acreditar na esposa?
Dr. GERALDO GALLO: Bem, parece que já aconteceu algumas vezes...
JUIZ J.: E além do mais ela é mulher. E é negra. Dez de cada doze jurados acreditam que as mulheres estão sempre mentindo, principalmente se a maioria dos jurados forem mulheres. Sendo negra, isso vai para doze em cada doze... Ela deve ser uma dona-de-casa, que não vai entender nada que do que a promotoria falar, vai chorar e por tudo a perder.
E é por isso mesmo que temos de entrevistá-la, como se fosse interrogatório. Você vai ver só, vai abrir a boca.
Dr. GERALDO GALLO: Talvez você prefira não dividir o caso.
JUIZ J.: E vou perder essa boca? Só por que eu disse
que a versão do rapaz é completamente idiota?
Dr. GERALDO GALLO: Mas verdadeira. A partir de agora temos de acreditar que ela é verdadeira, já que aceitamos o caso...
JUIZ J.: É, agora ela é verdadeira. Mas que é fraca é. Se reunir um júri de criancinhas do pré-primário, eles o condenariam.
E, no entanto, esse coitado é tão ingênuo, que podem ter apagado a moça para ele, sem ele nem desconfiar. Carambolas! Na idade dele, eu mesmo tive uma dessas Ronalda s na minha vida. Me apaixonei por uma prostituta.
Dr. GERALDO GALLO: Ele tem um bom coração. Sem nenhuma moral, mas bom, como um índio canibal. Tem uma outra moral e dentro dela, ele é inocente.
JUIZ J.: É, se ele acreditar na própria inocência, já é um passo para convencer o júri. Mas com o Promotor Xis isso não adianta. E ele é o tipo do sujeito simplório que vai responder tudo que o promotor perguntar. E com a mulher pode ser ainda pior. (Batem à porta.) Entra!
(MILENE entra, de olhos arregalados. Fecha a
porta.) Sim, Milene, o que foi?
MILENE: (Num sussurro.) A mulher do Barbosa está aí.
Dr. GERALDO GALLO: A Sra. do Barbosa.
JUIZ J.: Deixe eu te perguntar uma coisa. O que você acha do Barbosa? Sabe que ele foi preso por assassinato.
MILENE: Eu sei. Eu nem acredito que conheci ele em pessoa! Devia ter tirado uma foto!
JUIZ J.: Você acha que foi ele?
MILENE: Não, senhor. Tenho certeza que não.
JUIZ J.: Ah, é? Por que não?
MILENE: Ah, porque conheci ele de perto. Ele é famoso, rico e até sorriu para mim.
JUIZ J.: (Para Dr. GERALDO GALLO .) Então ele já convenceu três. (Para MILENE.). É, mas como diz a Dona Milene, é porque é famoso e ficou nosso amigo. Era preciso fazer isso com cada jurado. Pode mandar a Sra. do Barbosa entrar. (MILENE sai.) Vamos ver se conseguimos a quarta pessoa que acredita nele...
MILENE: (Entra) A Sra. Elza.
(ELZA entra. É uma morena de nariz empinado e demonstra certa arrogância de madame. Te um ar de indiferença e superioridade em relação a tudo à sua volta, e vai falar sempre em tom de ironia.)
Dr. GERALDO GALLO: Minha cara Sra. Elza. (MILENE sai, fechando a porta atrás de si.)
ELZA (tirando o excesso de batom com a unha do dedo mindinho no canto do lábio): Ah! O senhor é o Sr. Dr. Geraldo Gallo.
Dr. GERALDO GALLO: Sou. Este é Juiz J., que concordou em ouvir o caso de seu marido.
ELZA (estendendo languidamente a mão): Como está, Juiz J.(enfatizando o “jota”)?
JUIZ J.: Como está? A senhora me desculpe, mas você sabe ainda não aceitamos o caso e por enquanto vou me identificar apenas por Juiz J. A senhora compreende os riscos que alguém com o meu cargo está correndo, sem contar nas escutas que colocam hoje em dia... Mas se eu acreditar que seu marido é inocente, a justiça será feita!
ELZA (irônica): Acabo de ver o Barbosa sendo levado por dois homens, Dr. Geraldo Gallo. Ele havia dito que o Dr. iria livrá-lo e no entanto, não parecia que ele estava indo para a liberdade...
JUIZ J.: Vamos, minha cara Sra. Elza; não precisa ficar nervosa, Sra. Elza. (ELZA não demonstra o menor nervosismo
e ele fica constrangido.) Por que não se senta?
ELZA(sentando-se vagarosamente, alisando a mini-saia): Obrigada.
JUIZ J.: Por enquanto não há razão para ficar desesperada e
não deve se deixar desanimar.
ELZA : (Pausa e um suspiro.) Não vou me deixar desanimar de forma alguma.
JUIZ J.: Como a senhora insinuou, seu marido acaba de ser preso. Aqueles eram dois policiais civis.
ELZA (abaixando levemente a cabeça e olhando-os como se por cima de óculos imaginários) : Engraçado, preso justamente debaixo das asas de quem foi contratado para livrá-lo das grades... Preso, pelo quê mesmo? Pelo assassinato da Ronalda Domingues, ou ele aprontou com outra também?
JUIZ J.: Temo que sim. Mas por favor não se desespere.
ELZA : O senhor fica dizendo a mesma coisa. Eu não estou
desesperada, Juiz J.
JUIZ J.: Ok, Ok. Já percebi que é a senhora é uma mulher de fibra.
ELZA : Se o senhor quiser chamar assim.
JUIZ J.: O importante é agir agora de forma cautelosa e inteligente
ELZA : Acho que eu sou mais inteligente que cautelosa... Mas não me poupe de nada, Juiz J.. Eu quero saber a verdade. (fingindo uma exaltação, como numa novela) Não me poupe do o pior!
JUIZ J.: Escute, vamos olhar tudo de modo sensato e direto. Seu marido ficou amigo da Domingues há cerca de dois anos. A senhora tinha — conhecimento dessa amizade?
ELZA : Só não sabia que se chamava amizade... Ele não esconde nada de mim... Temos uma relação aberta... Mas aberta só para ele, não pra mim... Mas isso foi o que ele exigiu para a gente ficar junto...
JUIZ J.: Tudo muito natural, penso eu. E seu marido saía com ela?
ELZA : “Sair” para mim tem outro nome.
JUIZ J.: E eles se tornaram amantes.
ELZA (ajeitando o cabelo chapinhado, impaciente): Lógico!
JUIZ J.: Vocês já se viram pessoalmente?
ELZA : O Barbosa achava melhor isso não acontecer...
JUIZ J.: Aqui entre nós, por que razão ele achava melhor?
ELZA : Das duas umas: Ou a gente ia se engalfinhar, o que não era bom. Ou a gente ia ficar amiga, o que era pior para ele.
JUIZ J.: (Um pouco nervoso e evitando o assunto.) Sei, sei,
ótimo. Bem, vamos deixar esse assunto para depois. Seu marido, então, tornou-se amante da Srta. Domingues, com o seu conhecimento e consentimento. E ela apaixonou-se por ele e parou de cobrar pelos encontros?
ELZA : Disso eu não sabia... Mas não duvido, o Barbosa é muito pão-duro...
JUIZ J.: Digamos que ele sentia que aquilo seria só uma aventura rápida e nunca iria trocar seu relacionamento estável.
ELZA : As traições eram muito estáveis...
JUIZ J.: Mas senhora, não fazia objeções à “amizade” de seu marido com ela, fazia?
ELZA (olhando para o teto impaciente): Não creio que fiz qualquer objeção. Ruim com ele, pior sem.
JUIZ J.: A senhora tem confiança total em seu marido, Sra. Elza? Sabendo de tudo o que sabe...
ELZA (esticando as pernas e emparelhando os sapatos): Sim, conheço Barbosa muuuuito bem.
JUIZ J.: Não me espanta a sua calma e coragem, Sra. Elza. Sabendo, como sei, o quanto lhe é grata.
ELZA (olhando para o bico dos sapatos): Ah, então sabe o quanto eu lhe sou grata?
JUIZ J.: Imagino que sim.
ELZA : Ora, me desculpe, sou semi-analfabeta e nem sempre
compreendo os doutores. Mas de onde eu venho tem um ditado que diz:
quem vê cara, não vê coração... O senhor não está vendo meu coração, está Juiz J.? (Sorri, erguendo a cabeça, descendo as pálpebras e encarando-o.)
JUIZ J.: (Ligeiramente desconcertado.) Não, não; mas soube por seu marido.
ELZA : Barbosa disse ao senhor que eu era grata a ele?
JUIZ J.: Sem dúvida. Ele falou nessa fidelidade muito emocionado.
ELZA(virando a cabeça de lado e sussurrando para si mesma) : Já os homens só são fiéis com outros homens...
JUIZ J.: Perdão?
ELZA : Deixa pra lá. Continue. (com um gesto característico)
JUIZ J.: Essa Srta. Domingues era uma mulher
consideravelmente esperta. Queria fazer fama e dinheiro da forma mais fácil e rápida. Entrou na prostituição, fazia filmes pornôs. Depois conheceu seu marido e tentou um outro meio. Tentou engravidar do seu marido e dizia que conseguiu, ou seja, teve um filho que dizia ser do Barbosa... Depois começou a fazer ameaças de processos e escandâ-los na imprensa. E por fim fez uma denúncia de ameaça de morte.
ELZA : Sei.
JUIZ J.: A senhora sabe disso?
ELZA : Eu vi na tevê.
JUIZ J.: Bem, bem. Mas o seu marido nunca fez essa ameaça, não é mesmo?
ELZA : (Pausa e novo suspiro.) Foi isso o que lhe disse?
JUIZ J.: Foi. Não está sugerindo qualquer outra coisa, está?
ELZA : Não. Não, não. Não sugiro nada.
JUIZ J.: Parece não haver qualquer dúvida de que a Srta. Domingues considerava que seu filho tinha o seu marido como pai.
ELZA : (Com óbvia ironia.) O senhor acha que a Srta. Domingues
considerava meu marido como um pai?
JUIZ J.: (Sem graça.) Sim, é o que penso. Isso não tem nada de mais. É uma coisa normal nos nossos dias...
ELZA : Como são hipócritas as pessoas neste país. Aquela vaca não queria um pai para seu filho. Queria um idiota cheio da bufunfa que caiu no golpe da barriga e agora ia ter que pagar! Queria dinheiro!
JUIZ J.: Sra. Elza?!
ELZA : Eu o choquei? Sinto muito.
JUIZ J.: Claro, quer dizer... É natural que tenha uma visão diferente da nossa, na posição de esposa... Mas, advirto-lhe, minha cara Sra. Elza, que essa não é a linha a ser adotada no caso. Não seria nada inteligente sugerir, que vocês achavam que a Srta. Domingues tivesse querendo extorquir e chantagear o seu marido. Ou que vocês sentiam ódio por ela. Isso daria motivos para ele... Enfim é melhor adotarmos a linha de que ela engravidou numa aventura, e queria apenas que seu filho tivesse um pai reconhecido. E o Barbosa não tinha nenhum problema quanto a isso.
ELZA : Ora, então a chamaremos de uma mãe protetora, se assim julgar melhor.
JUIZ J.: Temos de pensar no efeito que todas essas coisas
exercerão sobre o júri, Sra. Elza.
ELZA : Sei. É no que eu tenho pensado...
JUIZ J.: Exato. Devemos trabalhar juntos. E agora chegamos à noite do dia 09 de junho. Faz pouco mais de um mês. A senhora se lembra da noite em questão?
ELZA : Como se fosse hoje.
JUIZ J.: A Srta. Domingues visitou o Barbosa nessa noite. Na presença da senhora, do empregado Maca, e dos outros. A Srta. Domingues mostrou-lhe o filho e ficou acertado de que ele pagaria a pensão da criança e ajudaria a criá-la se ficasse provado que fosse mesmo o pai. Se despediu dela cerca das nove horas. Voltou para o carro com a senhora, sendo que às dez horas estava na estrada.
(Olha para ela com ar interrogativo.)
ELZA : (Inexpressiva, distante e distraída, reflete.) Nove e cinqüenta e cinco...
JUIZ J.: Às nove e meia o Maca ouviu a voz da Srta. Domingues, chamando-o. Ela entregou-lhe o bebê, dizendo que não tinha condições de ficar com a criança e que ele cuidasse do filho até Barbosa assumi-lo. Saiu para pegar um táxi e desapareceu. O Delegado Antônio Lopes afirma que foi essa declaração que levou à prisão de seu marido, pois o carro só poderia ser o do Sr. Barbosa. No entanto, diz que tem um álibi perfeito para aquele momento, já que estava na estrada àquela hora, ou seja, às 22. (Pausa. ELZA não fala.) Esses fatos são verdadeiros, não são? Ele estava com a senhora às 22? (Os dois homens a olham.)
ELZA : Foi isso que Barbosa disse? Que estava na estrada comigo às dez?
JUIZ J.: Não é verdade? (Longo silêncio.)
ELZA : Hum, hum.
JUIZ J.: (Suspirando de alívio.) É possível que a polícia já tenha interrogado a senhora sobre esse ponto?
ELZA : Já, sim. Vieram ver-me ontem à noitinha.
JUIZ J.: E a senhora disse, o que?...
ELZA : (Como se repetisse algo decorado.) Eu disse que Barbosa estava comigo no carro às nove e cinqüenta e cinco, vírgula, e não saiu do meu lado. Ponto final.
Dr. GERALDO GALLO: (Pouco à vontade.) A senhora disse?... Oh!
ELZA : Falei direitinho, não falei?
JUIZ J.: O que quer dizer com isso, Sra. Elza?
ELZA : É isso que Barbosa quer que eu diga, não é?
JUIZ J.: É a verdade; a senhora acaba de afirmá-lo.
ELZA : Eu tenho de compreender — de ter certeza. Se eu disser que sim, que Barbosa estava comigo às 22, eles irão absolvê-lo? (JUIZ J. e Dr. GERALDO GALLO ficam perplexos.) Vão deixá-lo sair?
Dr. GERALDO GALLO: Se ambos estiverem dizendo a verdade, é a única chance deles absolvê-lo.
ELZA : Mas quando eu disse isso à polícia, acho que não acreditaram muito em mim, não... (Não está preocupada, antes, parece vagamente contente.)
JUIZ J.: Por que não acreditariam na senhora?
ELZA : (irônica) Talvez eu não decorei direito?
(empinando o queixo e o olhando os dois de cima)
JUIZ J.: Sabe, Sra. Elza, não estou entendendo as sua intenções.
ELZA : Quer dizer que não entende? Os senhores são tão cultos, experientes e inteligentes...
JUIZ J.: Talvez a posição de seu marido não esteja bem clara para a senhora?
ELZA : Eu nunca disse que sabia o tanto que o meu marido está enrolado. Eu disse à polícia que Barbosa estava na estrada às dez eles não acreditaram. Mas será que isso só depende de mim?
Dr. GERALDO GALLO: Seu marido não consegue se lembrar de mais ninguém que nos possa ajudar, nesse ponto.
ELZA : Quer dizer então que será apenas a palavra dele — e a minha. Obrigada; é isso que eu queria saber.
Dr. GERALDO GALLO: Mas, Sra. Elza, espere... Ainda há muito a discutir.
ELZA : Não comigo.
JUIZ J.: E por que não, Sra. Elza?
ELZA : Eu vou ter de jurar, não vou, dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade? (Parece estar se
divertindo.)
JUIZ J.: Oficialmente é isso.
ELZA : (Agora ironizando abertamente.) E suponha que, então, quando o senhor me perguntar... (Imita voz de homem.) “Onde estava o Barbosa às dez da noite?”, eu dissesse...
JUIZ J.: Bem?
ELZA : Eu esquecesse minha fala e dissesse outra coisa...
JUIZ J.: Sra. Elza, a senhora ama seu marido?

ELZA : (Voltando seu olhar de caçoada para Dr. GERALDO GALLO .)
Barbosa diz que amo.
Dr. GERALDO GALLO: Barbosa acredita que a senhora o ama.
ELZA : Mas Barbosa acredita em tudo.
JUIZ J.: A senhora sabe, Sra. Elza, que, por lei, não pode
prestar testemunho contra o seu marido?
ELZA : Muito cômodo!
JUIZ J.: E seu marido pode...
ELZA : Ele não é meu marido.
JUIZ J.: O quê?
ELZA : Estamos nos separando. Só estava comigo por causa dos filhos. E eu agüentei tudo por gratidão. Ele me tirou da zona e me levou para casa. Ele tem alguma fixação em putas, deve ser por lembrarem a mãe dele.
JUIZ J.: Ele a tirou do prostíbulo e a trouxe, sã e salva, para morar na casa dele? Deve ser realmente muito grata a ele. Será que está sendo?
ELZA : Fui grata demais por muito tempo. Ser grata às vezes cansa...
JUIZ J.: Alguma vez Barbosa a magoou de alguma
forma?
ELZA : Barbosa? Magoar a mim?(faz um beicinho). Quê isso? De jeito maneira...
JUIZ J.: E a senhora pretende magoá-lo de alguma forma? (Ela o olha nos olhos, depois ri e lhe dá as costas.)
ELZA : O senhor já está entrando na minha intimidade.
Dr. GERALDO GALLO: Creio que devemos ser muito claros sobre o assunto. Suas declarações têm sido um tanto ambíguas. Exatamente, o que foi que aconteceu na noite de 09 de junho?
ELZA(como se tivesse decorado um texto) : Barbosa conversou com a Ronalda no sítio, despediu-se, saímos e entramos no carro. Pegamos a estrada, onde às 22 dirigia ao meu lado. Eu lhe dei seu álibi, não dei?
JUIZ J.: Deu. Sra. Elza... (Pausa e eles a encaram em silêncio.)
ELZA : O que é?
JUIZ J.: A senhora é uma mulher interessante, Sra. Elza.
ELZA : E o senhor está satisfeito, eu espero.
JUIZ J.: Não muito satisfeito, mas vou aceitar o caso assim mesmo... (vira-lhe as costas e se afasta sozinho para o fundo da sala).
ELZA : Pagando bem, que mal tem, né?
Dr. GERALDO GALLO: A propósito, já que o seu marido está impedido neste momento, é a senhora quem vai discutir os honorários?
ELZA : Vou intermediar...
Dr. GERALDO GALLO: Escute mocinha, o Juiz J. é um homem muito sério, não está disposto para brincadeiras e nem veio aqui para ouvir insinuações e ser destratado. Mas está disposto a trabalhar a favor do Barbosa.
ELZA: E quanto vai ser a fortuna que isso vai custar?
Dr. GERALDO GALLO: Quanto vale a liberdade de seu marido? Quanto vale 30 anos ou mais de cadeia?
ELZA: Para ele deve valer muito... Para mim... O Sr. deveria ter definido isso com ele. O dinheiro é dele, a liberdade é dele...
Dr. GERALDO GALLO: Normalmente, cobramos quarenta por cento do salário do cliente por mês de trabalho. Creio que a instrução inicial, a defesa contra a prisão temporária, os habeas corpus, enfim, mantê-lo em liberdade até o julgamento final, deve demorar mais ou menos um ano. Como o salário dele é de 250 mil, jogando 40%, daria mais de um milhão e duzentos em um ano. Mas estamos dispostos fazer a defesa completa por 700 mil, incluindo a atuação de bastidores pelo Juiz J. Se o pagamento for adiantado e em dinheiro vivo, sem passar por contas. O restante vem depois que conseguirmos livrá-lo.
ELZA: 700 mil... Que coincidência... Acho que é a exata quantia que o Barbosa tem nos cofres...
Dr. GERALDO GALLO: Esses são os honorários. Se quiser que continuemos no caso, traga um sinal até o final da tarde e entraremos com o pedido de habeas-corpus, hoje à noite.
ELZA: O doutô é que manda... (sai, abrindo e fechando a porta, os homens se entreolham desconfiados).
JUIZ J.: Aquelazinha está arrumando alguma — mas o quê? Não estou gostando disso, Gallo.
Dr. GERALDO GALLO: E no final das contas, não derramou uma lágrima...
JUIZ J.: Um iceberg em forma de mulata...
Dr. GERALDO GALLO: O que ela poderá aprontar a chamarmos para depor?
JUIZ J.: Cabeça de juiz, e juízo de mulher, só Deus sabe!
Dr. GERALDO GALLO: A Promotoria poderá deitar e rolar com ela. Principalmente, se for o Promotor Xisto.
JUIZ J.: Um caso desses, certamente será ele.
Dr. GERALDO GALLO: Então qual será nossa linha de ataque?
JUIZ J.: A de sempre. Ficar na retaguarda, esperando o contra-ataque. Fazendo cera, interrompendo toda hora — e fazer todos os protestos possíveis.
Dr. GERALDO GALLO: O que me deixa tonto é que o trouxa do Barbosa me convenceu da fidelidade dela.
JUIZ J.: Não confie nisso. Qualquer mulher pode enganar qualquer homem — se quiser, se estiver querendo se vingar, e principalmente, se o homem tiver plena confiança nela.
Dr. GERALDO GALLO: E ele sem dúvida tem total confiança nela.
JUIZ J.: Então está perdido. Ninguém deve confiar em mulher. É por isso que nenhuma confia em outra, elas sabem do que são capazes...
Dr. GERALDO GALLO: É, achou que estava comendo a Ronalda de graça... Nove meses depois veio a fatura... Depois achou que podia se livrar dessa conta e o custo ficou muito mais alto... Não existe sexo gratuito. Sempre tem um preço...
(Fecham-se as cortinas)

ATO DOIS


CENÁRIO: 1ª Vara Criminal Central do Fórum da Comarca de Belo Horizonte, mais conhecido como Fórum Lafayette. Um ano depois. Manhã.

Quando a cortina se abre, o Tribunal está em sessão. O Juiz, o MERITÍSSIMO ARNALDO CÉSAR LEBRE, está rodeado pelo ESCRIVÃO, o TAQUÍGRAFO e o PROMOTOR XISTO DA SILVA que está sentado ao lado da fila da frente de advogados, com o Dr. GERALDO GALLO e as testemunhas. BARBOSA está de pé, no banco dos réus, com o guarda a seu lado. Nas filas de cadeiras logo atrás estão os jurados.

ESCRIVÃO: (Levantando-se.) Barbosa é indiciado sob acusação do assassinato de Ronalda Domingues, no dia 09 de junho de 2010, na cidade de Cruzeiro do Sul, Minas Gerais. O que tem a declarar, Sr. Barbosa? Se julga culpado ou inocente?
BARBOSA: Inocente.
ESCRIVÃO: Senhores jurados, o réu foi indiciado como autor do assassinato, no dia 09 de julho, de Ronalda Domingues.
Diante de tal acusação ele se declarou inocente, e é tarefa dos senhores jurados dizer, após ter ouvido os advogados, as testemunhas e terem visto as provas, se ele é ou não
culpado. (Manda BARBOSA sentar-se, com um gesto, depois
também se senta. PROMOTOR XISTO levanta-se.)
JUIZ: Um momento, Sr. Promotor Xisto. (PROMOTOR XISTO curva-se ante o JUIZ e torna a sentar-se. Para o júri.) Senhores Jurados, o momento adequado para dirigir-me aos senhores, resumir as provas e instruí-los quanto à lei é sempre após haverem os senhores ouvido todos os depoimentos. Entretanto, como tem havido considerável publicidade acerca deste caso na imprensa, gostaria apenas de dizer-lhes o seguinte, agora: cada um dos senhores segundo o juramento prestado há pouco, assumiu o compromisso de julgar este caso segundo as provas. Isso significa os depoimentos e as provas que os senhores vão ouvir e ver. Significa que não devem levar em consideração qualquer coisa que tenham visto ou ouvido antes de prestarem o juramento. Devem afastar de suas mentes tudo a não ser o que acontecerá neste Tribunal. Não devem deixar qualquer outra coisa influenciar suas mentes a favor ou contra o réu. Estou certo de que cumprirão conscienciosamente seu dever, do modo que acabo de sugerir. Pois não, Sr. Promotor Xisto.
(PROMOTOR XISTO levanta-se, pigarreia e ajeita o cabelo. Fala pausadamente, parecendo tomar fôlego, para conseguir o tom de voz o mais alto possível sem parecer nervoso ou irritado)
PROMOTOR XISTO: Às suas ordens, Meritíssimo. Senhores Jurados, represento neste caso, a Promotoria, enquanto que meu nobre colega Dr. Geraldo Gallo, a defesa. Trata-se de um caso de assassinato. Os fatos são simples e, até certo ponto, não são contestados. (pequena pausa)Serão informados, aqui, de que o réu, um homem jovem, famoso e rico, veio conhecer numa festa a Srta. Ronalda Domingues, uma jovem pobre que sonhava em ser modelo, mas que tinha que sobreviver e por isso era obrigada a prestar outros serviços. (pequena pausa)Que ela impressionada com o assédio do goleiro Barbosa, achando-se a própria Cinderela num conto de fadas, salva da miséria por seu príncipe, apaixonou-se por ele, manteve um relacionamento, do qual foi gerada uma criança... (pequena pausa)O Sr. Barbosa, no entanto, um homem casado que queria apenas mais uma aventura, abandonou-a grávida, ficando desesperado quando soube que poderia ser foi o pai da criança. (pequena pausa)A mãe com seu instinto de proteção, pensando no futuro do filho, informou ao Sr. Barbosa que iria lutar pelos direitos da criança, o que deixou o famoso goleiro furioso com a possibilidade de escândalo e perdas financeiras.... (pequena pausa)Em 09 de junho de 2010, a Srª Domingues, foi atraída ao sítio do goleiro Barbosa, na esperança de entrar em acordo com o pai da criança. Após uma discussão com o Sr. Barbosa, a Srª Ronalda desapareceu por volta das 22 horas. (pequena pausa) No dia de 09 de julho de 2010, exatamente um mês depois do desaparecimento, um adolescente de 17 anos, primo do goleiro Barbosa, confessa sua participação no assassinato de Ronalda Domingues, a mando do Sr. Barbosa, praticado com a ajuda do seu empregado Manuel Francisco Ferreira Garrincha, conhecido como Maca e do ex-policial Vicente Mateus, conhecido como Bola, além de mais quatro envolvidos. (pequena pausa) Ronalda foi espancada, torturada até desmaiar! Depois, ainda viva, foi jogada para cães famintos da raça Rootweiller!!. O que sobrou do corpo foi esquartejado e queimado, sendo os ossos jogados num lixão!!! (pequena pausa) A criança ficou com o Sr. Barbosa e sua esposa, Srª Elza Rodrigues. Quanto à natureza dessa barbaridade, dessa monstruosidade, os senhores terão de tirar suas próprias conclusões. (pequena pausa) O Perito Palhares irá declarar que, os fios de cabelo e o sangue encontrados no carro do réu, e as roupas encontradas em seu sítio, são da Srª Ronalda Domingues, não deixando a menor sombra de dúvida quanto ao assassinato no dia 09 de junho daquele ano, apesar de os assassinos terem desaparecido com o corpo da vítima. (pequena pausa) Ouvirão, igualmente, o depoimento do empregado e do adolescente primo do Sr. Barbosa, um menor que era íntimo do goleiro e foi coagido a participar do crime. (pequena pausa)O dia 09 de junho de 2010— uma sexta-feira — Barbosa esperava no sítio uma visita da Srta. Domingues, como já disse, para um possível acordo sobre a paternidade da criança. O empregado Maca e o menor primo do goleiro, haviam ficado do lado de fora, deixando os dois a sós. (pequena pausa)Entretanto, quando entraram na casa por volta das dez horas, não encontram o Sr. Barbosa, nem a Srta. Ronalda Domingues, apenas o bebê dormindo no sofá da sala. (pequena pausa)Maca em companhia do adolescente, liga imediatamente para Barbosa para saber o que aconteceu e este instrui o empregado a dizer que recebera a criança dos braços da mãe e que esta depois entrara em um carro que estava ligado e desaparecera.
BARBOSA: - Isto não é verdade! Isto não aconteceu!
PROMOTOR XISTO (quase berrando, sem pausar): O empregado se manteve fiel ao patrão e à essa mentira, porém o adolescente chocado e desesperado com a brutalidade e violência ocorrida, resolveu procurar a polícia e contar tudo o que vira: Barbosa estrangulou a ex-amante na frente do próprio filho e depois com a ajuda do empregado Maca, contratou o ex-policial Bola para dar sumiço no corpo!!! A Promotoria afirma que a Srta. Ronalda Domingues foi assassinada naquela noite de 09 de junho, por estrangulamento, num crime premeditado pelo réu!!! Chamarei agora o Delegado Antônio Lopes, responsável pelo inquérito policial.
(O DELEGADO levanta-se. Tem na mão uma pasta de arquivo, cheia de papéis, aos quais vai referir-se com freqüência durante a cena. Dirige-se ao banco das testemunhas.)
PROMOTOR XISTO: Delegado Antônio, o senhor estava de serviço no dia 09 de julho de 2010 quando houve uma denúncia anônima sobre o desaparecimento da Srta. Ronalda Domingues?
DELEGADO: Sim, senhor.
PROMOTOR XISTO: E o que fez então?
DELEGADO: Dirigi-me, com uma equipe ao sítio do goleiro Barbosa. Fizemos uma busca, onde encontramos fraldas de bebê e um sutiã. Logo depois, fomos à casa da Sra. Elza, esposa do goleiro Barbosa, fazer um interrogatório sobre o paradeiro da desaparecida, e descobrimos que o bebê estava em posse dela. Ela contou-nos a versão de que a criança fora entregue pela mãe, e então, resolvemos detê-la por subtração de menor incapaz. Depois fizemos uma perícia no carro encontrado no sítio, de propriedade do Sr. Barbosa, onde encontramos manchas de sangue e fios de cabelo.
PROMOTOR XISTO: E qual a significação disso?
DELEGADO: Eram pistas para as quais não foi dada uma explicação convincente pelos envolvidos, e então estas pistas tornaram-se indícios de serem do corpo da desaparecida, e depois provas contra os réus.
PROMOTOR XISTO: O senhor quer dizer que, após assassinada, a vítima foi transportada no carro do réu?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Objeção. O meu nobre colega está pondo palavras na boca da testemunha. É realmente necessário que ele observe as regras de depoimento. (Torna a sentar-se.)
PROMOTOR XISTO: (Para o DELEGADO.) O senhor já se ocupou em várias ocasiões de casos de assassinato e ocultação de cadáver?
DELEGADO: Já, sim, senhor.
PROMOTOR XISTO: E, segundo a sua experiência, quando ocorre um assassinato, seguido de ocultação de cadáver, sempre são deixadas marcas dos crimes, normalmente, manchas de sangue e fios de cabelo da vítima?
DELEGADO: Normalmente, sim.
PROMOTOR XISTO: Há algum caso que tenha investigado, no qual algum crime não tenha deixado essas marcas?
DELEGADO: Não.
PROMOTOR XISTO: Não. Quer fazer o favor de continuar?
DELEGADO: Foram feitas novas buscas, foram tiradas fotografias e tiradas impressões digitais de todo o local.
PROMOTOR XISTO: De quem eram as impressões digitais?
DELEGADO: Da Srta. Domingues, do Sr. Barbosa, Dona Elza, Maca, do menor, e outros envolvidos.
PROMOTOR XISTO: Mais nenhuma outra?
DELEGADO: Nenhuma.
PROMOTOR XISTO: Posteriormente o senhor teve uma entrevista com
Barbosa?
DELEGADO: Tive, sim, senhor. O Sr. Barbosa foi intimado a prestar o primeiro depoimento. Posteriormente, após confissão do menor, foi convocado novamente e por fim decretada sua prisão temporária.
PROMOTOR XISTO: E no dia 09 de julho, ao ser preso, o que disse o
prisioneiro?
DELEGADO: Disse “Ainda vou rir de tudo isso”.
PROMOTOR XISTO: O senhor disse exatamente, Delegado, que o réu demonstrava muita frieza nos interrogatórios?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Exatamente isso foi o que o Delegado não disse. (Para o JUIZ.).
JUIZ: Sim, absolutamente correto, . Ao mesmo tempo não estou certo de que o Delegado não tenha o direito de testemunhar quanto a fatos que possam levar a demonstrar a condição psicológica do réu naquele momento
Dr. GERALDO GALLO: Meritíssimo, respeitosamente concordo com o que disse V. Exª., mas insisto em que esse testemunho não seja apenas mera expressão de opinião e ainda mais nem sequer corroborada por fatos. (Senta-se.)
PROMOTOR XISTO: É possível, Meritíssimo, que, se eu enunciasse minha pergunta da seguinte maneira, o meu colega ficasse mais satisfeito: Delegado, era-lhe possível determinar, pelo que viu nos depoimentos, que o Sr. Barbosa não demonstrava nenhuma preocupação quanto ao desaparecimento da mãe de seu filho?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Meritíssimo, é realmente necessário que eu continue protestando. Meu nobre colega está novamente tentando obter uma opinião da testemunha.
(Senta-se.)
JUIZ: Muito bem. Sr. Promotor Xisto, o senhor vai ter de reformular sua pergunta uma outra vez.
PROMOTOR XISTO: Delegado, o senhor percebeu algo que o levasse a considerar plausível a hipótese de frieza e mentira nos depoimentos do Sr. Barbosa?
DELEGADO: Quando indagado sobre uma denúncia anterior de agressão contra a vítima, o réu respondeu sorrindo: “Quem nunca saiu na mão com uma mulher?”
PROMOTOR XISTO: Nada mais?
DELEGADO: Não, senhor; nada mais.
JUIZ: Parece que nesse ponto não chegamos a lugar algum, Sr. Promotor Xisto.
PROMOTOR XISTO: Naquela noite, a Srta. Domingues carregando muito dinheiro, que justificasse um assalto, seguido de seqüestro e morte?
DELEGADO: Não. Pelo que consta no inquérito, naquela noite ela estava apenas com a roupa do corpo e documentos, pois viajara de carona no carro do réu, dirigido pelo empregado Maca.
PROMOTOR XISTO: Consta algum registro de assalto ao condomínio do sítio em questão naquela semana?
DELEGADO: Nenhum.
PROMOTOR XISTO: Constam registros de estupros naquela área nos últimos tempos?
DELEGADO: Não. Era um local considerado muito tranqüilo.
PROMOTOR XISTO: Segundo sua experiência, Delegado, quando ocorre o desaparecimento de uma pessoa por tanto tempo, ela é encontrada com vida posteriormente?
DELEGADO: Não; normalmente é encontrada morta ou nunca é encontrada.
PROMOTOR XISTO: Neste caso, então, ao que tudo indica, a Srta. Ronalda está morta.
DELEGADO: Infelizmente, é o mais provável, senhor.
PROMOTOR XISTO: Então não restam dúvidas que os fios de cabelo e os vestígios de sangue, conforme esse laudo pericial, são da Srª Ronalda ? Então essa Srª, antes de desaparecer, foi ferida, já que derramou sangue?
DELEGADO: Isso mesmo, meu senhor.(PROMOTOR XISTO senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) O senhor diz que as únicas impressões digitais encontradas no sítio foram as da garota de programas Ronalda , do Sr. Barbosa, da sua esposa, Srª Elza, do empregado Sr. Manuel Francisco, e do menor. De acordo com sua experiência, um assassino premeditado, frio e calculista ao assassinar sua vítima, normalmente deixa suas impressões digitais ou tem por costume usar luvas?
DELEGADO: Ele costuma usar luvas.
Dr. GERALDO GALLO: Invariavelmente?
DELEGADO: Quase que invariavelmente.
Dr. GERALDO GALLO: Quer dizer que a ausência de impressões digitais em um caso de assassinato premeditado o surpreenderia?
DELEGADO: Não, senhor.
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem. E quanto às marcas de sangue encontradas no carro, apareciam nos bancos, ou no porta-malas?
DELEGADO: Nos bancos, senhor.
Dr. GERALDO GALLO: E isso não é coerente — e digo apenas coerente — com a hipótese do transporte de um cadáver no carro, já que nenhum assassino por mais demente que fosse, não iria transportar um cadáver no banco do carro, já que dispunha de um porta-malas? Logo, as marcas de sangue poderiam ser um ferimento qualquer no corpo da participante de filmes pornô, Ronalda .
DELEGADO: Ela poderia ter sido agredida dentro do carro...
Dr. GERALDO GALLO: Mas assassinada, DELEGADO? E depois não a colocariam no porta-malas, onde nenhum vestígio foi encontrado?
DELEGADO: Podem ter lavado muito bem o porta-malas, eliminando qualquer vestígio
Dr. GERALDO GALLO:
E iria se esquecer de lavar muito bem os bancos do carro? Diga-me, o senhor encontrou algum vestígio de sangue no sítio ou no porta-malas do carro, perto do local onde teria ocorrido o suposto crime ou apenas no banco do carro em questão?
DELEGADO: Apenas no carro.
Dr. GERALDO GALLO: Ah, sim?
DELEGADO: E também fios de cabelo da vítima.
Dr. GERALDO GALLO: O que apenas prova que a prostituta Ronalda , apenas já esteve no carro de propriedade do meu cliente, podendo inclusive ser na noite em que ela foi contratada por terceiros para uma orgia. Estes fios de cabelo e as marcas de sangue poderiam ser de dias anteriores ao de 09 de junho?
DELEGADO: Em tese, sim, senhor.
Dr. GERALDO GALLO: A violência criminosa, como todos nós sabemos, infelizmente, tem aumentado muito nos últimos tempos. O senhor concordaria com isso?
DELEGADO: Todos já sabemos disso, senhor.
Dr. GERALDO GALLO: Suponhamos que alguns marginais que atuam naquela região de Cruzeiro do Sul, tivessem seqüestrado a garota Ronalda , enquanto essa esperava um táxi ou um ônibus na noite em que deixou a criança no sítio e foi embora. Sem contar que ao contrário do que a testemunha disse, a Ronalda carregava sim uma grande soma em dinheiro dada pelo senhor Barbosa pelo acordo feito no sítio. Sendo ela uma jovem atraente, eles a poderiam ter , além de a roubado, estuprado, assassinado e dado sumiço no corpo, longe do foco de investigação da polícia até o momento, e por isso o cadáver não foi encontrado ainda? Se é que existe cadáver?
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Sugiro que seja totalmente impossível ao DELEGADO Antônio adivinhar o que se passaria na mente de alguns jovens marginais totalmente hipotéticos que certamente não existem. (Senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: O réu apresentou-se sempre que convocado e se entregou quando teve a ordem de prisão preventiva decretada ? Aliás, injustamente?
DELEGADO: Exatamente.
Dr. GERALDO GALLO: E o réu, quando interrogado a respeito das manchas de sangue em seu carro, chamou a sua atenção para o fato de a profissional do sexo Ronalda , ter registrado uma denúncia de uma suposta agressão do meu cliente?
DELEGADO: Chamou sim.
Dr. GERALDO GALLO: Então o sangue no carro poderia ter vindo de uma agressão, relatada pela própria Ronalda ?
DELEGADO: Em tese, talvez, mas acho difícil...
Dr. GERALDO GALLO: Um simples sim ou não, por favor.
DELEGADO: Sim, poderia.
Dr. GERALDO GALLO: Uma última questão que deixo aos pensamentos dos jurados: Pode haver uma assassinato sem um cadáver? Pensem nisso com muita calma... (Dr. GERALDO GALLO senta-se.)
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) O que foi que, de início, chamou sua atenção nesse caso, DELEGADO?
DELEGADO: O desaparecimento da Srª Ronalda , e o aparecimento de seu filho no sítio do réu.
PROMOTOR XISTO: E depois disso, as denúncias de ameaças do réu contra a vítima, o processo de reconhecimento de paternidade que a vítima interpusera contra o réu, a presença dela no sítio com o filho, ou seja, uma sucessão de causas e conseqüências que explicaria o desaparecimento dela?
DELEGADO: Sim, senhor.
PROMOTOR XISTO: E sua atenção foi chamada para as marcas de sangue no carro do Sr. Barbosa?
DELEGADO: Foi sim, senhor.
PROMOTOR XISTO: Dado que o sangramento tenha sido provocado por uma coronhada na nuca, conforme confessou o menor, primo do réu, não há o que dizer que era qualquer outro ferimento, oriundo de qualquer outro fato?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Realmente, Meritíssimo, se o meu nobre colega vai responder a suas próprias perguntas, e vai fazer a testemunha de boneco de ventríloquo, a presença do Delegado me parece desnecessária. (Senta-se.)
PROMOTOR XISTO: Retiro a pergunta. Obrigado, DELEGADO. (O DELEGADO sai.) Dr. Dario dos Santos!
(O Dr.Dario dos Santos levanta-se e entra no recinto destinado às testemunhas, levando algumas notas consigo)
PROMOTOR XISTO: O senhor é o Dr. Dario dos Santos ?
DARIO DOS SANTOS : Sou.
PROMOTOR XISTO: O senhor é médico-legista da polícia, servindo na região de Cruzeiro do Sul?
DARIO DOS SANTOS : Sim.
PROMOTOR XISTO: Dr. Dario dos Santos , poderia ter a bondade de contar ao júri o que sabe a respeito da morte da Srta. Ronalda ?
DARIO DOS SANTOS : (Lendo suas notas.) Às onze horas da manhã do dia 29 de junho, eu examinei o carro marca Land Rover, de propriedade do Sr. Barbosa das Dores de Souza Soares, e recolhi amostras de sangue e fios de cabelo para exame. Os resultados dos exames concluíram ser da vítima Ronalda . Após confissão do menor, de que desferira uma coronhada na cabeça da vítima, causando-lhe a morte, concluímos que o sangue teve origem de um ferimento na cabeça da vítima.
PROMOTOR XISTO: Houve qualquer luta entre a Srta. Ronalda e seu adversário?
DARIO DOS SANTOS : Não há indícios de que tenha havido. Eu diria que, ao contrário, ela estivesse inteiramente imobilizada. (PROMOTOR XISTO senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Doutor, exatamente onde, na cabeça, foi desferido o golpe? E foi apenas um golpe, não foi?
DARIO DOS SANTOS : Apenas um, conforme a confissão do menor. Na parte esquerda da junção temporal.
Dr. GERALDO GALLO: Perdão? Onde?
DARIO DOS SANTOS : Na têmpora esquerda. A junção dos ossos parietal, occipital e temporal.
Dr. GERALDO GALLO: Ah, sei. E, em linguagem de leigo — onde é que fica isso?
DARIO DOS SANTOS : Atrás da orelha esquerda.
Dr. GERALDO GALLO: E isso indicaria que a pessoa que desferiu o golpe é canhota?
DARIO DOS SANTOS : É difícil determinar. Eu diria que é realmente impossível dizer se o golpe foi desfechado por um homem destro ou canhoto, já que está baseado apenas na confissão de um dos envolvidos.
Dr. GERALDO GALLO: Não sabemos ainda se foi aplicado por um homem, doutor. Mas o senhor concorda que, pela descrição feita por menor de mente fantasiosa, transcrita nos autos do processo, foi uma descrição de quem aplica o golpe com a mão esquerda?
DARIO DOS SANTOS : É possível. Mas eu preferiria dizer que isso é incerto.
Dr. GERALDO GALLO: No momento em que o golpe foi desferido, é provável que o sangue atingisse a mão ou o braço do agressor, ou o banco da frente, espirrasse sangue pelo teto, piso e partes internas do carro?
DARIO DOS SANTOS : Somente se desferido com uma violência mortal.
Dr. GERALDO GALLO: Mas já que o golpe teria causado a morte da vítima, teria que ser aplicado com uma violência mortal! Não é lógico? E não foram encontrado marcas de sangue no piso, no teto, nas portas, mas tão somente alguns pingos no banco.
DARIO DOS SANTOS : É possível que não tenha sido aplicado com tanta força...
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem, doutor. Se não foi aplicado com muita força e com apenas um golpe, não poderia ter causado a morte de uma Mulher adulta, e portanto o menor de mente fértil, mentiu. E mais uma coisa Dr. , o senhor como um perito que revistou minuciosamente o carro, a ponto de encontrar até fios de cabelos, não sabe nem que carro periciou. O senhor Barbosa não possui nenhuma Land Rover. O carro dele é de uma outra marca de outro fabricante. É uma Range Rover. Obrigado, doutor. (Senta-se.)
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) O senhor só trocou apenas uma letra doutor. Um lapso irrelevante. Obrigado, doutor. (Ao MEIRINHO.) Chame o menor. (DARIO DOS SANTOS levanta-se e sai)
MEIRINHO: O menor W.T.C.!
( O menor entra e olha para BARBOSA com um leve sorriso sarcástico.)
PROMOTOR XISTO: As iniciais de seu nome é W.T.C, vulgo Gandula?
GANDULA: É. Meu nome é esse.
PROMOTOR XISTO: O senhor é primo do réu Barbosa das Dores e servia de um faz-de-tudo para ele?
GANDULA: Eu era primo e ajudava ele, não era faz-tudo nenhum, mão.
PROMOTOR XISTO: Exato, exato. Eu quis apenas dizer que o senhor gozava da estima e afeição do Sr. Barbosa e vivia em termos amistosos com ele. Não em termos de patrão e empregado.
GANDULA: (Para o JUIZ.) Ele às vezes me dava alguma grana, mas era mixaria. Dava só pra comida e algum dinheiro pra gastar na balada. Mas eu não morava na casa dele não. Morava na periferia mesmo. Ele confiava em mim e eu quebrava o galho dele com serviços de rua.
JUIZ: Sr. GANDULA, faça o favor de dirigir suas declarações ao júri.
PROMOTOR XISTO: Que tipo de pessoa era o Sr. Barbosa?
GANDULA: Era meio cabeça quente, às vezes. Meio mandão e se meteu numas enrascadas com algumas mulheres. Não tinha muito juízo. Era fácil de ser enganado por essas vagabas.
PROMOTOR XISTO: Quando conheceu o outro réu, o Maca, pela primeira vez?
GANDULA: Quando o Barbosa me buscou para eu morar no Rio. Maca ajudava ele também resolver as coisas. Mas tinha muita coisa. O Bar Goleiros, o time de futebol 100%, muita conta pra pagar, aluguel pra receber. Aí eu e o Maca dividia o serviço.
PROMOTOR XISTO: Quantas vezes ele esteve naquele sítio?
GANDULA: Muitas vezes, quando eu morava em BH. As vezes eu ia com Maca preparar o sítio para a folga do Barbosa. O Maca é um puxa-saco do Barbosa, só ficava lá, babando ovo, e eu ralando.
PROMOTOR XISTO: (Um tanto precipitadamente.) Certo, certo. Será que poderia agora, Sr. GANDULA, com suas próprias palavras, falar ao júri a respeito dos acontecimentos do dia 09 de junho?
GANDULA: O crime? Deu numa quarta. O Maca disse que tinha uma parada de responsa pra resolver pro Barbosa e ia precisar de mim. Disse que a gente ia pegar a Ronalda pra ela parar de encher o saco do Barbosa... Disse que ela ia aprender e que o Barbosa ia ficar livre daquele tormento.
PROMOTOR XISTO: E de que jeito o réu Barbosa ia se livrar dela?
GANDULA: Ah, eu pensei que era uma coça, uma sova bem dada...
PROMOTOR XISTO: E o que aconteceu na verdade?
GANDULA: Primeiro a gente ia pegar a Ronalda na casa dela e falar que o Barbosa queria fazer um acordo bom com ela e a criança. Ela ia morar num casão em BH mais uma pensão gorda por mês que o Barbosa ia tratar.
PROMOTOR XISTO: Mas não era nada disso, não é mesmo? Havia algo combinado que você não sabia?
GANDULA: É, o Maca me deu uma arma e disse que era pra eu vigiar a Ronalda enquanto ele dirigia, pois ela podia desconfiar e aprontar. E teve uma hora, que Ronalda falou que finalmente o Barbosa tinha aprendido. Aí o Maca resmungou “Cê que vai aprender”. Não sei se ela escutou, mas continuou falando que ela agora iria “ganhar tudo o que era devido ou o Barbosa ia ver”. Aí o Maca resmungou de novo “Ocê vai ter o seu... Cê vai ver...” Aí ela que tava no banco da frente, gritou “Pára agora, vou descer”. E já foi tirando o cinto pra abrir a porta. Aí eu dei uma coronhada pra ela ficar quieta.
PROMOTOR XISTO: Então ela desmaiou e o senhor pegou o bebê...
GANDULA: É, e dali a pouco a gente já tava no sítio. Chegando lá eu vi o Barbosa que tava com o Bola e aí eu comecei a desconfiar que o jogo era pesado.
PROMOTOR XISTO: E o que fez então?
GANDULA: Fiquei lá fora olhando o neném. Ela já tava acordando, o Maca levou ela pra dentro e começou a gritaria. Depois parou e eu fui ver.
PROMOTOR XISTO: E o que viu?
GANDULA: Ela tava no chão, a pobre, com a cabeça toda amassada, a camisa rasgada. O Maca chegou e falou pra eu entregar o neném pra Elza que tava no outro carro do Barbosa. E falou pra eu ir com ele e o Bola pra desovar o corpo.
PROMOTOR XISTO: E o que Senhor fez?
GANDULA: Eu fiquei com muito medo, mas o Maca falou pra eu ficar frio, pra obedecer e ajudar, pois eu já tinha participado do crime. E pra eu ficar de boca fechada.
PROMOTOR XISTO: Senão iria morrer também?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se de um salto.) Realmente, Meritíssimo, tenho de protestar. (Senta-se.)
JUIZ: Não permitirei que essa pergunta seja respondida, Sr. PROMOTOR XISTO. Ela não deveria ter sido feita à testemunha.
PROMOTOR XISTO: Então deixe que lhe pergunte isto, Sr. GANDULA: o que eles fizeram depois disso?
GANDULA: Levamos ela para a casa do Bola.
PROMOTOR XISTO: Para quê?
GANDULA: Eu não sabia.
PROMOTOR XISTO: E o que fizeram?
GANDULA: Primeiro eu fiquei no carro, e eles lá dentro.
PROMOTOR XISTO: O que é que o senhor sabia do Bola?
GANDULA: Sabia que ele era muito perigoso.
PROMOTOR XISTO: Você viu ele recebendo dinheiro do Barbosa?
GANDULA: Vi ele pegando um pacote.
PROMOTOR XISTO: Ele recebeu um pacote de dinheiro direto das mãos do Sr. Barbosa?
GANDULA: É.
PROMOTOR XISTO: Pra que tipo de serviço? O assassinato ou a ocultação de cadáver.
GANDULA: O segundo. Não acho que foi o Bola que matou não...
PROMOTOR XISTO: Então quem matou a Srª Ronalda ?
GANDULA: O Barbosa e o Maca...
PROMOTOR XISTO: Juntos? Em que momento?
GANDULA: Na hora que entraram para dentro e eu fiquei de fora. Acho que os dois deram nela e apertaram o pescoço dela até ela morrer. Ela gritava: “Não, não.”
PROMOTOR XISTO: O senhor sabe dizer o que matou a Sra. Ronalda ?
GANDULA: O enforcamento.
PROMOTOR XISTO: Bem, para homens fortes estrangular uma Mulher que já tinha sido covardemente espancada, não precisavam dois homens. E nem é possível um estrangulamento a quatro mãos. Quem estrangulou até a morte a senhora Ronalda ?
GANDULA: O Barbosa é que tinha mais raiva, né?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Objeção. Mesmo se fosse verdade toda essa fantasia desse menino, era impossível dele saber, já que ele não via a cena. (Senta-se.)
PROMOTOR XISTO: Vamos dizer assim: O senhor tem a opinião de que a Srtª. Ronalda foi assassinada pelo Sr. Barbosa, tendo certeza de que o Maca participou diretamente do crime? Há fatos que comprovem essa sua opinião?
GANDULA: Tem. A Ronalda tava lá, do lado de fora também.
JUIZ: Temo que não possa admitir isso.
GANDULA: Por quê?
JUIZ: A citada pelo Sr. é esposa do réu e vai depor hoje.
PROMOTOR XISTO: Obrigado. (Senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se sorridente) Creio que todos nós apreciamos e avaliamos o quanto este jovem era fiel ao seu primo que o tirou da miséria e deu-lhe um trabalho digno e conforto.
GANDULA: Mais ou menos.
Dr. GERALDO GALLO: E o Senhor ajudava muito o seu primo famoso. E o Sr. Manuel Francisco também... Quem ajudava mais?
GANDULA: Há eu ralava mais, o Maca só puxava o saco, fazia tatuagem nas costas com o nome do Barbosa, colecionava as camisas do Barbosa, vivia pagano pau pra ele.
Dr. GERALDO GALLO: Quer dizer que o senhor e o senhor Manuel Francisco disputavam a amizade do Sr. Barbosa?
GANDULA: Eu não. O Maca que era ciumento, parecia namorada do Barbosa.
Dr. GERALDO GALLO: E houve algum desentendimento entre vocês?
GANDULA: O Maca pediu pro Barbosa me deixar de fora dos negócios, porque eu estava mais atrapalhando que ajudando.
Dr. GERALDO GALLO: E o senhor ficou muito magoado com isso?
GANDULA: Fiquei puto, porque depois de tanto ralar pro Barbosa, saí com uma mão na frente e outra atrás.
Dr. GERALDO GALLO: Até que o Sr. Manuel Francisco pediu-lhe para ajudar num serviço, não é?
GANDULA: Foi. Pra levar a Ronalda pro sítio de Esmeralda.
Dr. GERALDO GALLO: E conforme o seu primeiro depoimento, no trajeto o senhor agrediu a cabeça de Ronalda com uma coronha e ela veio a falecer?
GANDULA: Eu pensei que ela tinha morrido. Mas só apagou um pouco.
Dr. GERALDO GALLO: Mas o senhor disse que ela havia morrido no primeiro depoimento?
GANDULA: Claro. Já disse que sim. Mas foi uma combinação com o Barbosa. Eles me disseram para assumir o crime porque eu era o único de menor e não ia pegar cadeia. Disse que eu ia me dar muito bem... Aí, no início eu aceitei, depois caí no desespero, arrependi e confessei a verdade.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor disse que caiu no desespero... A polícia deve ter te deixado nervoso... Não aceitavam a sua primeira confissão, porque inocentava o Sr. Barbosa... Te fizeram tortura moral, te ameaçaram e o senhor para ficar livre acabou dizendo o que eles queriam ouvir... O senhor concorda?
PROMOTOR: Protesto! O colega está colocando palavras na boca da testemunha!
JUIZ: Faça outra pergunta, Dr. GERALDO GALLO.
Dr. GERALDO GALLO: Bom depois, o senhor diz que ficou do lado de fora, ouviu gritos e quando foi lá dentro, viu um corpo caído?
GANDULA: É, foi.
Dr. GERALDO GALLO: Voltando à noite de 09 de junho. O senhor disse que foi o Sr. Manuel Francisco e o Sr. Barbosa, que espancaram até a morte a Ronalda . Suponhamos que essa história absurda fosse verdade. Como o senhor poderia saber se os dois a espancaram, se o senhor estava do lado de fora com o bebê?
GANDULA: Acho que um segurava, enquanto o outro batia.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor acha? O senhor acha muito... Imagina muito... Quer dizer então que apenas ouviu uma gritaria?
GANDULA: Eles estavam batendo nela.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor ouviu uma voz de um homem ou de dois ou de uma de Mulher gritando, ou rindo, foi isso?
GANDULA: Só uma Mulher gritando e o barulho das pancadas.
Dr. GERALDO GALLO: O barulho das pancadas? Descreva o tipo de barulho de pancadas que o senhor ouviu...
GANDULA: Barulho de tapas, de coisas caindo, de queda no chão, enquanto ela gritava.
Dr. GERALDO GALLO: O que ela gritava?
GANDULA: Pára! Pára!
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem. Depois o senhor foi lá conferir e ajudou a transportar o corpo para o carro? Como ela estava?
GANDULA: Mortinha...
Dr. GERALDO GALLO: Suponhamos que a sua estoriazinha seja verdade: O senhor é médico para saber se ela estava morta? Como sabia que ela estava morta e não apenas desmaiada?
GANDULA: Ah, ela estava com boca aberta, a língua meio pra fora. E eles falaram...
Dr. GERALDO GALLO: Quem falou?
GANDULA: O Maca. O Barbosa não saiu.
Dr. GERALDO GALLO: Ah, quer dizer que o senhor não viu o senhor Barbosa depois que ele entrou na casa?
GANDULA: Não, quando eu entrei, ele não estava na sala e nem ajudou a carregar o corpo.
Dr. GERALDO GALLO: Então o senhor sequer viu o senhor Barbosa no local do suposto crime. E depois o que fizeram com o corpo?
GANDULA: Levamos para a casa do Bola. Ele ia dar um sumiço.
Dr. GERALDO GALLO: E o senhor viu ele dando um sumiço?
GANDULA: Não eu fiquei no carro com o Maca. Depois de uma hora ele chamou o Maca e eu fiquei sozinho. Aí eu vi eles carregando sacos sujos de sangue até o canil. Aí eles jogaram os pedaços dela pros rottweillers comer.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor viu os pedaços do corpo? Mãos, braços, pernas, cabeça, pés, nádegas, vísceras?
GANDULA: Não. Acho que eles não quiseram que eu visse isso. Era muito chocante...
Dr. GERALDO GALLO: Então o senhor só imaginou, não é?
GANDULA: Eu sabia que o Bola ia fazer a desossa do corpo.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor sabia... Eu sugiro que o senhor diga que imaginou... Então os rottweillers comeram todos os pedaços do corpo e a senhora Ronalda sumiu para sempre.
GANDULA: Não. Sobraram os ossos. Aí o Bola concretou dentro de uma parede.
Dr. GERALDO GALLO: Concretou? O senhor viu isso?
GANDULA: Não, nessa hora eu e o Maca fomos embora.
Dr. GERALDO GALLO: Quer dizer que o Bola concretou os ossos do cadáver dentro de uma parede. Acontece senhor GANDULA, que a polícia, acreditando nas suas estoriazinhas de terror, teve um trabalho enorme quebrando todas as paredes da casa do senhor Vicente Mateus, e não encontrou absolutamente nada. Nada!
GANDULA: Ele deve ter desistido e os ossos foram pro lixão. Era mais fácil.
Dr. GERALDO GALLO: No lixão? O senhor soube disso, viu isso ou só imaginou?
GANDULA: Eu deduzi.
Dr. GERALDO GALLO: Ora, ora. Agora o senhor está deduzindo? Já é um avanço para quem só imaginava...
GANDULA: Eu soube que pagaram 70 mil para um traficante sumir com os ossos
Dr. GERALDO GALLO: Ainda temos outra versão? Entrou um traficante agora na história? Surgido da onde? E para quê? Jogar uns ossos no lixo? Por 70 mil?
GANDULA: Também achei caro.
Dr. GERALDO GALLO: Bom, senhor GANDULA, não pretendo mais ocupar o tempo precioso do Meritíssimo e dos jurados com suas histórias, que parecem não ter fim... E que na certa todas têm origem num ciúme adolescente por seu primo Barbosa, que deu preferência à amizade do Sr. Manuel Francisco... Deve tê-lo perturbado bastante, Sr. GANDULA, pensar realmente que o Sr. Manuel Francisco, que não era parente, pudesse ser preferido pelo Sr. Barbosa e desfrutar de sua fama, ganhar de presente suas camisas. O senhor não ficou nada satisfeito com essa situação não, é?
GANDULA: É claro que não.
Dr. GERALDO GALLO: Para início de conversa, com essa escolha do senhor Barbosa, é perfeitamente possível, não é, que ele tivesse sido persuadido pelo senhor Maca a despedi-lo?
GANDULA: Eu não fui despedido, eu não era empregado. Eu era amigo e primo. O Maca só convenceu o Barbosa a me deixar fora dos negócios.
Dr. GERALDO GALLO: Então o senhor acha que o senhor Manuel Francisco fez a cabeça do senhor Barbosa para te deixar de fora.
GANDULA: Ele falou de tudo para se livrar de mim.
Dr. GERALDO GALLO: Compreendo. O senhor perdeu aquela vida boa de andar em carrões, de conhecer jogadores famosos, de entrar onde o senhor Barbosa entrava, enfim perdeu um cobiçadíssimo modo de vida e foi parar anônimo e sem dinheiro num bairro de periferia, juntos com seus pais.
GANDULA: Eu fui jogado pra escanteio, só isso. E não tava nem aí. Fodas!
Dr. GERALDO GALLO: Sim, isso é muito perturbador. Não é de espantar que tenha ressentimentos tão amargos contra o seu primo. (Senta-se.)
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Meu nobre colega despendeu muita energia para arrancar do Sr. GANDULA uma admissão de sentimentos de vingança contra o réu...
Dr. GERALDO GALLO: (Sem levantar-se, virando-se na cadeira para o júri.) Não doeu nadinha.
PROMOTOR XISTO: O senhor acredita que o Sr. Barbosa realmente tenha assassinado a Srª Ronalda ?
GANDULA: Acredito. Ô, se acredito.
PROMOTOR XISTO: A seus olhos o réu queria dar um fim nas ameaças de processos e escândalos que a senhora Ronalda fazia contra ele?
GANDULA: Depois que a Ronalda foi morta ele disse: “Acabou o tormento”.
PROMOTOR XISTO: O Maca e o Barbosa demonstraram não gostar do senhor em alguma ocasião?
GANDULA: Não, eles confiavam em mim. Tanto é que me chamaram para participar da coisa.
PROMOTOR XISTO: Apenas mais uma questão. Então não tinha motivos para o senhor ter raiva deles ou querer se vingar de algum mau trato?
GANDULA: Não. Vingança não. Ele é meu primo. Sangue do meu sangue.
PROMOTOR XISTO: Obrigado, Sr. GANDULA.
GANDULA: (Para o JUIZ.) Bom-dia. (sai)
PROMOTOR XISTO: Chamem Elza de Souza Soares. (O POLICIAL abre aporta.)
PROMOTOR XISTO: Seu nome é ELZA Souza?
ELZA: É.
PROMOTOR XISTO: Tem vivido como Mulher do réu, Barbosa de Souza Soares?
ELZA: Tenho.
PROMOTOR XISTO: E é, efetivamente, sua Mulher legal?
ELZA: Sim...
PROMOTOR XISTO: Mas sabia que o Barbosa participava de orgias, tinhas outras amantes?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Meritíssimo, tenho as mais graves objeções ao fato de se permitir este tipo de pergunta. Nós não temos nenhuma prova da existência dessas orgias e outras amantes e isto não consta dos autos.
PROMOTOR XISTO: Se meu nobre colega não fosse tão precipitado, o Meritíssimo teria sido poupado dessa nova interrupção. (Dr. GERALDO GALLO senta-se.) Sra. Elza, estas são fotos do Barbosa beijando outras garotas (O MEIRINHO se levanta, leva as fotos e mostra-a a ELZA.)
ELZA: É.
JUIZ: Eu gostaria de ver as fotos. (O MEIRINHO entrega as fotos ao ESCRIVÃO, que a entrega ao JUIZ.) Estas serão anexadas ao processo como provas?
PROMOTOR XISTO: Creio que sim, Meritíssimo.
JUIZ: (Após examinar as fotos) Creio, Dr. GERALDO GALLO, que as perguntas são pertinentes ao processo, já que se baseiam em provas que agora fazem parte dele. (Entrega as fotos ao ESCRIVÃO.)
(O ESCRIVÃO leva as fotos ao MEIRINHO, e este, a Dr. GERALDO GALLO.)
PROMOTOR XISTO: De qualquer forma, Sra. Elza, a senhora está disposta a testemunhar contra o homem que vem chamando de seu marido?
ELZA: Mais do que disposta. (BARBOSA se levanta, imitado pelo GUARDA.)
BARBOSA: ELZA! O que é que está dizendo?
JUIZ: É preciso que haja silêncio. Como o seu advogado poderá informá-lo, Sr. Barbosa, dentro de muito pouco tempo o senhor terá a oportunidade de falar em sua própria defesa. (BARBOSA e o GUARDA tornam a sentar-se.)
PROMOTOR XISTO: (Para ELZA.) Quer relatar, com suas próprias palavras, o que aconteceu na noite de 09 de junho?
ELZA: Eu estava no sítio e saí para esperar dentro do carro, pois o Barbosa disse que a Ronalda estava chegando para resolver de uma vez o assunto do filho.
PROMOTOR XISTO: E o Barbosa de Souza Soares?
ELZA: O Barbosa ficou na casa.
PROMOTOR XISTO: Quanto tempo?
ELZA: Uma hora mais ou menos, depois que o carro chegou com a Ronalda .
BARBOSA: Isso não é verdade. Você sabe que não é verdade. Eu fiquei lá menos de meia hora, entreguei o dinheiro para Ronalda , que disse que deixaria o filho comigo e sumiria. Quem é que a está obrigando a fazer essa sacanagem? Que palhaçada é essa? (Ele se encolhe, pondo o rosto entre as mãos, quase sussurrando.) Puta que pariu... Me fodeu. (Torna a sentar-se junto com o GUARDA.)
PROMOTOR XISTO: Barbosa de Souza Soares ficou, a senhora disse, uma hora dentro da casa? E então o que aconteceu durante esse tempo?
ELZA: O carro estava um pouco longe, mas eu ouvi gritos. Depois de uma hora Barbosa voltou, com a respiração alterada, muito agitado. Tirou o casaco e ficou olhando. Depois disse para lavar bem lavado. Estava sujo de sangue.
PROMOTOR XISTO: Ele falou a respeito do sangue?
ELZA: Ele disse: “Porra, tá sujo de sangue.”
PROMOTOR XISTO: E o que foi que a senhora disse?
ELZA: Eu disse: “O que foi que você fez?”
PROMOTOR XISTO: E o que foi que o réu respondeu?
ELZA: Ele respondeu: “Finalizei ela.”
BARBOSA: (Levantando-se, frenético.) É mentira! É mentira! (O GUARDA segura BARBOSA.)
JUIZ: Por favor, controle-se.
BARBOSA: É tudo armação, é tudo mentira! (Senta-se. O GUARDA permanece de pé.)
JUIZ: (Para ELZA.) A senhora sabe o que está dizendo, Sra. Elza?
ELZA: Eu devo dizer a verdade, não devo?
PROMOTOR XISTO: O réu disse: “Eu a matei.” A senhora sabia a quem ele se referia?
ELZA: É lógico! Quem mais poderia ser? A cachorrinha de estimação?
PROMOTOR XISTO: E o que aconteceu então?
ELZA: Ele me falou pra dali em diante dizer que eu tava o tempo todo com ele naquela noite. Eu disse a ele: “A polícia não vai descobrir?” E ele respondeu: “Não, o Bola vai sumir com o corpo. Mas, se der rolo cê vai dizer que estava comigo no sítio e depois na estrada, o tempo todo.”
PROMOTOR XISTO: E posteriormente a senhora foi interrogada pela polícia?
ELZA: Fui.
PROMOTOR XISTO: E perguntaram-lhe se Barbosa de Souza Soares estava com a senhora no sítio?
ELZA: Perguntaram.
PROMOTOR XISTO: E qual foi a sua resposta?
ELZA: Eu disse que sim.
PROMOTOR XISTO: Mas, agora, alterou seu depoimento. Por quê?
ELZA: (Com emoção fingida) Porque é um assassinato! Não posso continuar a mentir para ele se safar. Não sou uma ingrata. Ele me tirou da zona, casou comigo e me deu tudo o que tenho. O que ele me pediu até hoje eu sempre fiz porque era grata.
PROMOTOR XISTO: Por que o amava?
ELZA: Não, nunca o amei.
BARBOSA: ELZA!
ELZA: Eu nunca o amei.
PROMOTOR XISTO: A senhora era grata ao réu. Ele a levou para casa. Ele lhe pediu que lhe desse um álibi e, a princípio, a senhora concordou, porém mais tarde julgou que fazer aquilo que ele lhe pedira era errado?
ELZA: Sim, exatamente.
PROMOTOR XISTO: E por que julgou que era errado?
ELZA: Porque é assassinato. Não posso vir ao Tribunal e mentir, afirmando que ele tava o tempo todo comigo, e dizer que não teve crime. Não posso fazê-lo. Não posso.
PROMOTOR XISTO: Então o que fez?
ELZA: Eu não sabia o que fazer, tinha medo da polícia. Eu já tinha sido presa por causa do bebê e foi horrível. Tenho medo de ir para a cadeia, por isso vou dizer a verdade.
PROMOTOR XISTO: E esta é a verdade: que Barbosa de Souza Soares ficou uma hora dentro da casa com a vítima, que saiu de lá morta. Que tinha sangue nas mangas de seu casaco e que disse à senhora: “Eu a matei.” Essa é a verdade?
ELZA: Essa é a verdade. (PROMOTOR XISTO senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Quando o réu passou pela cerimônia de casamento com a senhora, sabia ele que você trabalhava como prostituta?
ELZA: Não.
Dr. GERALDO GALLO: Ele se casou sem saber?
ELZA: Casou.
Dr. GERALDO GALLO: E a senhora ficou muito grata a ele?
ELZA: Sim, fiquei muito grata a ele.
Dr. GERALDO GALLO: E demonstrou sua gratidão vindo aqui e depondo contra ele.
ELZA: Eu tenho de dizer a verdade.
Dr. GERALDO GALLO: E disse a verdade?
ELZA: Sim.
Dr. GERALDO GALLO: Eu sugiro à senhora que na noite de 09 de junho, Barbosa de Souza Soares esteve no sítio o tempo todo na sua presença. Que a Ronalda chegou, vocês fizeram um acordo, no qual a Ronalda receberia uma boa quantia em dinheiro, e desapareceria do cenário, o que acabaria com processos e escândalos que estavam impedindo a venda do goleiro Barbosa para o exterior. Porém a Ronalda não queria ficar com o filho, e exigiu que o Barbosa cuidasse dele. Vocês aceitaram, pagaram a quantia à Ronalda , que ficou ainda no sítio, enquanto a senhora e o senhor Barbosa se dirigiram para o carro e foram embora... Sugiro que toda essa sua história é uma fabricação maldosa e que a senhora tem, por alguma razão, ressentimentos contra o réu e este foi o seu meio de expressá-los.
ELZA: Não.
Dr. GERALDO GALLO: A senhora compreende que está sob juramento?
ELZA: Compreendo.
Dr. GERALDO GALLO: Eu a estou avisando, Sra. Elza, que, se não se importa com o réu, deve ter cuidado por si própria. As penas por perjúrio são muito pesadas.
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se e intervindo.) Realmente, Meritíssimo. Não sei se essas explosões teatrais têm o intuito de amedrontar a testemunha, mas eu devo objetar que a testemunha tem garantias de que nada lhe acontecerá de ruim se ela contar apenas a expressão da verdade.
JUIZ: Sr. PROMOTOR XISTO, esta é uma acusação por assassinato qualificado e dentro dos limites razoáveis eu gostaria de oferecer à defesa a maior latitude possível. Pois não, Dr. GERALDO GALLO. (PROMOTOR XISTO torna a sentar-se.)
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem. A senhora disse — que havia sangue no casaco?
ELZA: Disse.
Dr. GERALDO GALLO: Em que lugar?
ELZA: Nas mangas.
Dr. GERALDO GALLO: Não, Sra. Elza. A senhora afirmou: “Ele me disse que era para eu lavar o casaco. Havia sangue nele.”
JUIZ: Essa é exatamente a minha anotação, Dr. GERALDO GALLO.
Dr. GERALDO GALLO: Obrigado, Meritíssimo. (Para ELZA.) O que a senhora estava dizendo é que lavou as mangas.
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Agora é a vez do meu colega de ser impreciso. Em momento algum a testemunha disse que lavou ambas as mangas, ou que sequer tenha lavado uma. (Senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: Meu colega está certo. Muito bem, Sra. Elza, a senhora lavou as mangas?
ELZA: Eu não sou lavadeira. Joguei dentro da máquina, a diarista que se vire. E nem me pergunte o que ela lavou, eu não dou confiança a empregados.
Dr. GERALDO GALLO: Obrigado. Talvez sua memória mereça pouca confiança também quanto a outros pontos da sua história. Creio que sua versão inicial, dada à polícia, foi a de que o seu marido tinha ficado menos de meia hora com a Ronalda , o tempo todo na sua presença.
ELZA: Foi o que eu disse. Mas não era verdade. E não é meu marido, é ex-marido.
Dr. GERALDO GALLO: E por que mentiu?
ELZA: Eu repeti o que Barbosa tinha mandado dizer.
Dr. GERALDO GALLO: Chegando mesmo a lavar o tal casaco e eliminar provas, o que é um crime...
ELZA: Eu não lavei nada, só joguei dentro da máquina desligada. A diarista que lavou. O Barbosa deve ter fiscalizado o trabalho dela.
BARBOSA: (Levantando-se.) Jamais fiz uma coisa dessas.
Dr. GERALDO GALLO: (Silenciando BARBOSA.) Por favor, por favor. (BARBOSA senta-se. Para ELZA.) Então confessa que seu primeiro depoimento para a polícia era todo mentiroso? Parece ser excelente mentirosa.
ELZA: Barbosa me disse o que falar.
Dr. GERALDO GALLO: O problema é sabermos se estava mentindo naquele momento ou se está mentindo agora. Se ficasse realmente tão horrorizada ante a idéia de se cometer um assassinato, poderia ter dito a verdade à polícia quando foi interrogada pela primeira vez.
ELZA: Eu estava com medo de Barbosa.
Dr. GERALDO GALLO: A senhora estava com medo de Barbosa — com medo do homem que te tirou da zona e te transformou numa rainha. Creio que o júri saberá em quem deverá acreditar. (Senta-se.)
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Elza de Souza Soares, eu torno a perguntar-lhe: o depoimento que prestou é a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade?
ELZA: É.
PROMOTOR XISTO: Meritíssimo, está apresentado o caso pela Promotoria. (Senta-se.)
(ELZA sai)
BARBOSA: (Quando ELZA passa por ele.) ELZA!
MEIRINHO: (Levantando-se.) Silêncio!
JUIZ: Dr. GERALDO GALLO.
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se e tomando fôlego.) Meritíssimo, Senhores Jurados, não lhes direi aqui, como poderia, que não há crime, não há acusação a ser respondida pelo réu! Existe um caso, mas não um assassinato, pois não existe cadáver! Um caso de provas circunstanciais e outras construídas pela mídia! Os jornais, sites e tevê, investigaram, indiciaram, prenderam, julgaram e condenaram meu cliente! Ele já entrou aqui condenado pela mídia, pelos seus formadores de opinião e consequentemente seus telespectadores! Porém, suplico aos senhores jurados que sempre tenham em mente: Jornalistas não possuem técnica, nem meios, nem condições, ou quer que seja, para chegarem à conclusão nenhuma sobre nenhum crime! Isso é trabalho da polícia e do judiciário! Esqueçam tudo o que viram , leram e ouviram até o momento sobre esse caso! Atenham-se somente ao que for dito e mostrado neste Tribunal! E os senhores ouviram a polícia e outras testemunhas técnicas... Estas testemunharam justa e imparcialmente, como é do seu dever. Contra elas não tenho o que dizer. Por outro lado, ouviram o menor GANDULA e a Mulher que se chama de Elza de Souza Soares! Podem acreditar que seus testemunhos não são deformados?! GANDULA tirado de campo, eliminado do emprego e da amizade com o primo Barbosa, um famoso jogador de futebol, e de tudo o que ela representava: dinheiro, fama, conforto, etc! Sendo que perdeu tudo isso para um outro amigo do Sr. Barbosa! (Pausa.) Elza de Souza Soares — Elza, Elza (balançando negativamente a cabeça —, que armou uma reles farsa para incriminar o marido e ficar livre com o seu patrimônio, enquanto ele perderá sua vida atrás das grades! Aquela Mulher deve-lhe mais do que jamais lhe poderá pagar tudo o que deve! Ela era prostituta, o iludiu, casou-se e ganhou vida de rainha, ao lado de um jovem rico e famoso! Mas admite que não o ama... (pausa) Ele já serviu aos seus objetivos. E ela queria mais. Peço-lhes que tenham muito cuidado no modo pelo qual acreditarão em seu testemunho, o testemunho de uma Mulher educada na vida errada, que abria mão de um amor sincero em troca da promiscuidade, por causa de dinheiro, uma Mulher cuja profissão era mentir. Mentir para seus clientes, fingir prazer, fingir orgasmo, fingir amor! A mentira é a sua vida! O fingimento a sua profissão! E se o trabalho é a vida, sua vida era a mentira! Senhores Jurados, eu chamo o réu, Barbosa de Souza Soares.
(O MEIRINHO levanta-se e vai ao banco das testemunhas. BARBOSA levanta-se e vai testemunhar, seguido pelo GUARDA que fica de pé atrás dele.)
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem, Sr. Barbosa. Nós já sabemos de sua amizade com a desaparecida Ronalda . Agora quero que nos diga quantas vezes manteve relações com ela.
BARBOSA: Uma vez só.
Dr. GERALDO GALLO: Em que circunstâncias?
BARBOSA: Numa suruba, bem, orgia organizada pelo segundo goleiro do flamengo, Paulo Tostão, em casa dele.
Dr. GERALDO GALLO: E em que consistiu essa relação?
BARBOSA: Fiquei com ela uns vinte minutos num quarto e só.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor ouviu o Menor GANDULA dizer que a Ronalda ameaçava o senhor constantemente por causa do suposto filho e agressões sofridas. Há alguma verdade nisso?
BARBOSA: Claro que não. Estive com ela uma vez e nunca mais a vi. Depois ela entrou em contato com o Maca, dizendo que estava grávida de mim. Queria aplicar o golpe da barriga. Aí é que eu nunca mais quis olhar para a cara dela. O Maca passou a intermediar a conversa e os acordos sobre a criança. Sabia que ela estava me processando sobre isso e aquilo, fazia ameaças de escândalos, mas eu nem ligava, sabia que era armação para me arrancar dinheiro.
Dr. GERALDO GALLO: A Srª. Elza soube dessa história?
BARBOSA: Soube.
Dr. GERALDO GALLO: E então pediu a separação?
BARBOSA: Pediu. Mas manteve a amizade, para eu continuar vendo minhas filhas.
Dr. GERALDO GALLO: E, em troca, o senhor fazia tudo o que podia por ela.
BARBOSA: Eu dava tudo o que ela precisava. Nunca faltou nada.
Dr. GERALDO GALLO: Quer contar ao júri, com suas próprias palavras, exatamente o que aconteceu na noite de 09 de junho?
BARBOSA: Bem, eu tinha combinado um encontro em meu sítio com a Ronalda , para resolver essa história toda e dar fim a esse escândalo nos jornais que estava me atrapalhando com meus patrocinadores e minha transferência para a Europa. O acordo era uma quantia de dinheiro em troca da Ronalda sumir da minha vida, levando a criança junto, sem teste de DNA, sem processo, sem nada. Ela chegou na noite desse dia no sítio, nós fizemos o acordo, com a diferença que ela não quis ficar com a criança. Eu disse tudo bem, eu cuido do bebê, já que havia chance dele ser meu filho. Não tinha nenhum problema com isso. Onde come dois, come três, quatro. Aí fechamos o acordo, ela pegou o dinheiro, uma alta quantia. Eu peguei meu carro, fui embora com a Elza, e o Maca e meu primo ficaram de dar carona pra ela.
Dr. GERALDO GALLO: Sim, mas o senhor não...
JUIZ: Dr. GERALDO GALLO, não entendi todo esse trecho do depoimento. Que história é essa de atrapalhar patrocinadores e transferência para Europa?
BARBOSA: Eu estava para ser vendido para um time Europeu e lá eles não compram jogadores com nome ruim na mídia. Eles pagam os jogadores com a venda de camisas para os seus torcedores. Se o jogador tá mal na fita, ninguém vai comprar sua camisa. E mesmo no Brasil, ninguém me contratava para fazer propagandas, mesmo eu sendo capitão do time de maior torcida no país e campeão brasileiro, pois eu estava com o nome sujo na mídia.
JUIZ: Certo, certo...
BARBOSA: Eu achei que era a coisa certa a fazer.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor viu o Menor GANDULA naquela noite?
BARBOSA: Não. Ele não entrou. Ficou com a criança que eu nem vi também. Depois eu saí e fui embora.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor sabia que o Menor GANDULA, estava magoado com o senhor e poderia fazer o que fez?
BARBOSA: De jeito nenhum. Achava que gostava de mim. Era meu primo, e eu ajudava ele e a família dele. Eu não esperava isso.
Dr. GERALDO GALLO: E por que o senhor acha que ele fez isso?
BARBOSA: Primeiro que ele sempre foi mentiroso e segundo estava enciumado porque eu dispensei ele dos trabalhos.
Dr. GERALDO GALLO: Sim. Voltando àquela noite. O senhor ficou quanto tempo na casa com a Ronalda ?
BARBOSA: Eu diria entre vinte minutos e meia hora.
Dr. GERALDO GALLO: E depois foi para o seu carro...?
BARBOSA: Peguei o carro e fui embora.
Dr. GERALDO GALLO: E sua Mulher— eu a chamarei de sua Mulher— estava no carro te esperando?
BARBOSA: Claro que estava. Eu — eu acho que ela deve ter enlouquecido. Eu...
Dr. GERALDO GALLO: Não se importe com isso agora. Apenas continue sua história. O senhor pediu ela para lavar suas roupas?
BARBOSA: Não, pra que eu ia pedir isso?
Dr. GERALDO GALLO: Seu casaco não estava sujo de sangue, não é mesmo? Quem lavou seu casaco?
BARBOSA: A diarista, eu não sou ligado nessas coisas.
Dr. GERALDO GALLO: Quando foi que teve notícia dessa história pela primeira vez?
BARBOSA: Quando li no jornal da tarde, umas semanas depois.
Dr. GERALDO GALLO: E o que foi que sentiu?
BARBOSA: Eu fiquei amedrontado. Não acreditei. Fiquei muito perturbado, também. Os jornais diziam que suspeitavam de assassinato por mim. Aí eu apavorei...
Dr. GERALDO GALLO: E depois disso, o que aconteceu?
BARBOSA: Eu li que a polícia iria me convocar para depoimento, de modo que, naturalmente, fui até a delegacia.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor foi à delegacia e fez um depoimento?
BARBOSA: É.
Dr. GERALDO GALLO: E não estava nervoso? Relutante?
BARBOSA: Não, por que eu estaria? Eu sabia que Ronalda tinha pegado a grana e sumido como combinado.
Dr. GERALDO GALLO: Recebeu alguma notícia do paradeiro de Ronalda ?
BARBOSA: Não. Perguntei para o Maca o que tinha acontecido naquela noite. Ele disse que Ronalda tinha deixado a criança no sítio e depois deram uma carona pra ela até a cidade mais próxima.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor sabia que Ronalda tinha feito denúncias de agressão contra o senhor?
BARBOSA: Ela vivia fazendo ameaças ao Maca, querendo tirar dinheiro de mim.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor sabia quais seriam os termos dessas denúncias?
BARBOSA: Nem queria saber.
Dr. GERALDO GALLO: Ela havia sugerido, alguma vez, que iria denunciá-lo por ameaça de morte?
BARBOSA: Eu sabia através do Maca. E já que ela tinha denunciado isso, eu não iria ser idiota de fazer alguma coisa contra ela. Eu seria o primeiro suspeito. Por isso queria resolver logo a situação, porque vai que um cliente maníaco dela faz alguma coisa, eu ia ser o culpado.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor ouviu o testemunho de sua Mulher — ou daquela a quem o senhor considerava sua Mulher— aqui neste Tribunal.
BARBOSA: É, eu ouvi. Eu não compreendo — eu...
Dr. GERALDO GALLO: Eu compreendo, Sr. Barbosa, que o senhor está muito perturbado, porém desejo pedir-lhe que deixe de lado qualquer emoção e responda às perguntas de forma clara e simples. O que aquela testemunha disse é verdadeiro ou falso?
BARBOSA: Não, é mentira.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor esteve o tempo todo com a sua Mulher naquela noite e depois foram embora no carro?
BARBOSA: Foi.
Dr. GERALDO GALLO: Vou fazer-lhe apenas mais uma pergunta, Sr. Barbosa. O senhor matou Ronalda Domingues?
BARBOSA: Não, não a matei. (Dr. GERALDO GALLO senta-se.)
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) O senhor já foi extorquido alguma vez por alguém?
BARBOSA: Não.
PROMOTOR XISTO: Então não sabia como reagir num caso desse... Desde quando, em seu relacionamento com a Sra. Ronalda , o senhor soube que ela estava grávida de um filho seu?
BARBOSA: Bem, eu nem sabia que estava e não acreditava que o filho fosse meu. Fiquei sabendo pelo Maca.
PROMOTOR XISTO: Mas, tendo obtido tal informação, resolveu abortar essa criança?
BARBOSA: Não, nunca. Se tivesse tentado isso, eu teria conseguido.
PROMOTOR XISTO: O senhor teria forçado ela a beber um abortivo com uma arma na cabeça?
BARBOSA: Não. Eu nunca faria isso!
PROMOTOR XISTO: O senhor acabou de dizer que teria conseguido se tentasse?
BARBOSA: Queria dizer que hoje em dia é uma coisa muito fácil de se fazer, em qualquer farmácia, basta a Mulher querer.
PROMOTOR XISTO: Mas ela não queria.
BARBOSA: Parece que não né? Já que teve a criança... Era a galinha dos ovos de ouro...
PROMOTOR XISTO: Que salário percebe?
BARBOSA: Bem, para falar a verdade, no momento eu estou desempregado. O Flamengo me demitiu.
PROMOTOR XISTO: Na época o senhor ganhava muito é o que eu quero dizer...
BARBOSA: Isso todo mundo sabe: Era 250 mil ao mês.
PROMOTOR XISTO: No momento em que foi preso, quanto dinheiro o senhor tinha no banco?
BARBOSA: Uns setecentos mil.
PROMOTOR XISTO: Quanto?
BARBOSA: Setecentos mil.
PROMOTOR XISTO: Eu lhe pergunto quanto o senhor tem agora?
BARBOSA: Praticamente nada. Nem sei.
BARBOSA: Bem. Não gastou tudo com os honorários do nobre colega. Mesmo sendo um excelente advogado e ator, nenhum advogado cobra tanto por um caso...
Dr. GERALDO GALLO: Protesto Meritíssimo! Essas divagações são ofensivas e não tem nada a ver com o processo.
JUIZ: Sr. PROMOTOR XISTO vá direto ao ponto se tiver algo a ver com o caso ou mude o foco.
PROMOTOR XISTO: Ouvimos dizer que o Sr. teria pago uma quantia ao Maca e sua família, inclusive a sua esposa grávida de nove meses, para assumir toda a culpa do crime e livrar-se da prisão.
BARBOSA: Isso é mentira!
PROMOTOR XISTO: O Menor GANDULA disse-nos isso em depoimento. Era o combinado no caso de descobrirem o crime.
BARBOSA: Bem, o meu primo nunca me disse isso. Ele costumava inventar muitas histórias, mas não me lembro disso.
PROMOTOR XISTO: Então onde foi parar os 700 mil que havia em suas contas?
BARBOSA: Advogados, despesas de manutenção do sítio, aluguel, as famílias de meus parentes que não parei de ajudar. Pergunte a Elza, ela que ficou administrando o dinheiro. Vai ver ela pegou tudo. Agora não duvido de nada.
PROMOTOR XISTO: Muito conveniente o senhor responder isso. Por que razão, Sr. Barbosa, o senhor colocaria naquela noite sua esposa e sua amante uma na frente da outra, no suposto acordo? Não era o correto deixá-la esperando no carro para evitar brigas?
BARBOSA: Eu e a Elza, a gente tava se separando. Ela queria um acordo para defender o patrimônio, que é parte dela e a outra parte dos filhos dela.
PROMOTOR XISTO: O senhor afirma que a Sra. Elza sabia de suas amantes e até participava dos acordos?
BARBOSA: Afirmo.
PROMOTOR XISTO: No entanto, o senhor fica espantado de sua esposa, mãe dos seus filhos, traída e humilhada, chegar aqui e contar toda a verdade?
BARBOSA: A verdade não. Fico espantado dela ter mentido tanto. Mas vai ver ela mentiu de vingança contra tudo isso que o senhor disse.
PROMOTOR XISTO(desconcertado): E por que ela faria isso?
BARBOSA: Ciúmes, orgulho ofendido, quando descobriu que sua cabeça estava cheia de chifres, resolveu se vingar, mentindo contra mim.
PROMOTOR XISTO (arrependido da pergunta anterior): O senhor acha que a mãe dos seus filhos iria querer ver o pai deles atrás das grades o resto da vida por um ciúme bobo? Perder toda a fonte de renda do marido, uma pensão milionária para ela e os filhos...
BARBOSA: Ela não iria querer, ela está trabalhando para isso agora. Assim ela vai ficar com todo meu patrimônio que já construí. E ainda se vinga.
PROMOTOR XISTO (arrependido de novo de ter perguntado, mudando de foco): E a Sra. Ronalda, por que iria querer sumir, assim sem mais nem menos, se tinha um filho do senhor e o senhor estava se separando?
BARBOSA: Ela não sabia que o filho era meu. Não tinha nenhum resultado de DNA. Ela fez isso por dinheiro, e nem queria o filho, pois deixou comigo.
PROMOTOR XISTO: O senhor quer dizer que ela não estava apaixonada pelo senhor?
BARBOSA: Apaixonada? O senhor está brincando... Ela era uma maria-chuteira, só queria dinheiro. Não tinha nem instinto maternal. Engravidou e usava o filho para arrancar grana.
PROMOTOR XISTO: Como?
BARBOSA: É o velho golpe da barriga.
PROMOTOR XISTO: O senhor quer dizer que a Sra. Domingues esperava, não é mesmo, obter alguma vantagem monetária do senhor?
BARBOSA: Óbvio.
PROMOTOR XISTO: E ninguém gosta de ser extorquido? E o senhor resolveu tomar providências para dar um fim nessa extorsão e nas ameaças que ela vinha lhe fazendo?
BARBOSA: Não do modo que o senhor está querendo dizer.
PROMOTOR XISTO: Não do modo que eu estou querendo dizer? O senhor parece saber o que eu quero dizer melhor do que eu mesmo. De que modo o senhor esperava dar um fim nessa história, então? (Pausa.) Eu repito, de que modo o senhor pensou em dar um fim na Srª Ronalda ?
BARBOSA: Nela não. Só queria fazer um acordo para resolver tudo de uma vez por todas. Pagar ela uma grana preta para ela desaparecer da minha vida. Apesar de tudo eu não a odiava.
PROMOTOR XISTO (irônico): Sim, sim — já ouvimos muitas vezes o senhor dizer que gostava muito dela.
BARBOSA: Gostar é outra coisa...
PROMOTOR XISTO: Eu creio, Sr. Barbosa, que cerca de uma semana antes de ser preso o senhor esteve pedindo informações sobre vistos e viagem para o exterior.
BARBOSA: E daí — isso é crime?
PROMOTOR XISTO: De modo algum. O senhor é um homem rico e pode viajar a qualquer hora. Porém nenhum jogador viaja para o exterior, disputando campeonato brasileiro ou viaja, Sr. Barbosa?
BARBOSA: Eu já disse que eu estava sendo negociado com a Europa.
PROMOTOR XISTO: E estava com pressa hem? Já foi tirando visto e tudo...
BARBOSA: Sou prevenido e vistos demoram para sair.
PROMOTOR XISTO: O senhor estava pensando em deixar o país o mais rápido possível, com ou sem negociação e depois recomeçar a carreira num clube do leste europeu ou russo, de propriedade de algum mafioso, de algum país onde as leis ainda são muito subjugadas pelo poder econômico?
BARBOSA: Claro que não. Isso seria desespero.
PROMOTOR XISTO: Eu sugiro que o senhor sabia que dentro de uma semana a sua prisão temporária seria decretada.
BARBOSA: Eu não sabia de nada disso. Eu fique surpreso com a prisão!
PROMOTOR XISTO: E o senhor realmente espera que o júri acredite nisso?
BARBOSA: Eu não espero que ninguém acredite em nada! Mas foi isso o que aconteceu. Eu não estava pensando em fugir, simplesmente porque não matei ninguém!
PROMOTOR XISTO: Então foi apenas uma coincidência notável, que apenas uma semana depois de ter providenciado tudo para uma viagem imediata para o exterior, a sua prisão tenha sido decretada?
BARBOSA: Eu já disse que não ia fugir. Se quisesse teria feito!
PROMOTOR XISTO: A sua história é que na noite do dia 09 o senhor ficou só meia hora com a Srª Ronalda em presença da sua ex-esposa, depois pegou o carro e foi embora.
BARBOSA: É.
PROMOTOR XISTO: O senhor ouviu a Srª Elza de Souza Soares negar essa história no Tribunal. Ouviu-a dizer que o senhor ficou sozinho com a vítima dentro da casa do sítio durante uma hora e depois voltou para o carro com o casaco sujo de sangue.
BARBOSA: É mentira!
PROMOTOR XISTO: Que suas roupas estavam manchadas de sangue ou que o senhor confessou a ela haver matado a Sra. Ronalda ?
BARBOSA: As duas coisas. Tudo é mentira. Eu já te falei mil vezes que é armação, mentira!
PROMOTOR XISTO: E o senhor pode sugerir alguma razão pela qual essa jovem, sua esposa, mãe de seus filhos, haveria de fazer deliberadamente o depoimento que fez se ele não fosse verdadeiro?
BARBOSA: Não sei o que ela tem na cabeça. E isso que me deixa nervoso. Sempre dei tudo pra ela. Ela vai ficar com parte do meu patrimônio, mas se eu ficasse livre, jogando na Europa, ela ia ganhar muito mais. Ou ela é burra ou tá ficado louca!
PROMOTOR XISTO: O senhor acha que ela deve ter ficado louca? Ela parecia extremamente controlada e em seu juízo perfeito. Mas a insanidade é a única razão que o senhor consegue sugerir.
BARBOSA: Sei lá... Meu Deus — o que será que fez ela ficar desse jeito?! Ela mudou demais!
PROMOTOR XISTO: Muito impressionante, sem dúvida. Mas neste Tribunal nós tratamos com fatos. E o fato é, Sr. Barbosa, que temos apenas a sua palavra de que não assassinou a Srª Domingues.
BARBOSA: O Maca também pode confirmar isso.
PROMOTOR XISTO: Pode. Um amigo que faria tudo pelo senhor e que quiçá recebeu em torno de 700 mil reais para corroborar toda essa farsa. Porém a única pessoa que estaria com o senhor naquela casa com a vítima, diz que o senhor estava lá sozinho. E essa pessoa diz que o senhor tinha sangue em suas roupas quando voltou de lá. A outra pessoa, o menor, diz que o Maca estava dentro da casa, é verdade, mas para segurar a vítima enquanto o senhor a estrangulava.
BARBOSA: O senhor torce tudo. O senhor torce tudo o que eu digo. O senhor me faz parecer uma pessoa diferente do que eu sou. Eu nem te conheço. Nunca te fiz nenhum mal. Por que tá fazendo isso comigo?!
PROMOTOR XISTO: O senhor entrou no carro com o casaco sujo de sangue.
BARBOSA: Não entrei, não. Eu não fiz nada, mas o senhor faz parecer que eu fiz! O senhor deve odiar o Flamengo!
PROMOTOR XISTO: O senhor chegou em casa e pediu a empregada para lavar o seu casaco sujo de sangue.
BARBOSA: Não cheguei, não. O senhor tem de acreditar em mim. Tem de acreditar em mim! O senhor deve ser vascaíno doente!
PROMOTOR XISTO: O senhor matou Ronalda Domingues!!!
BARBOSA: Não matei, não!!! (As luzes se apagam rapidamente, deixando dois refletores sobre BARBOSA e PROMOTOR XISTO. Tão logo este último acaba de falar os dois refletores também se apagam.) Eu não a matei. Eu nunca matei ninguém. Meu Deus! É um pesadelo. Parece um pesadelo , um filme de terror!

ATO TRÊS
Cena I
CENÁRIO: Escritório do Dr. GERALDO GALLO na mesma noite.
Dr. GERALDO GALLO: Droga de calor! (Liga o ar condicionado que não funciona)
JUIZ J.: (Tirando o terno.) Está uma noite desgraçada.
Dr. GERALDO GALLO: Será que não existe justiça divina? O Tribunal tava um forno abafado, venho correndo para o escritório, doido pelo friozinho do ar e a porcaria não funciona!
JUIZ J.: Mas o clima não está tão feio como a situação do Sr. Barbosa, depois da representação da Sra. Elza.
Dr. GERALDO GALLO: Ô MULHERZINHA desgraçada! Lembra que eu tava desconfiado? Vi que era uma pistoleira! Uma putinha escolada, sem coração e vingativa, vai acabar com toda a vida do marido. Mas não peguei ainda a jogada dela... O que será que está querendo? Diga lá.
JUIZ J.: Quer que o Barbosa se lasque!
Dr. GERALDO GALLO: Mas por quê? Pense em tudo o que ele fez por ela.
JUIZ J.: O problema é que ele não fazia só com ela... Uma Mulher pode até apanhar do marido e levar chifre em segredo, mas não aceita traição em público. Ser trocada por outra na frente da família, amigas... Nesse caso, na frente do Brasil inteiro.
Dr. GERALDO GALLO: E ela quer vingar por isso. É bem provável. As MULHERES tem uma moral a parte, bem diferente da do homem. Mas por que ser vingativa? Ela ganharia mais com ele solto, vendido para Europa, recebendo em Euros, pagando pensão para ela e as crianças... Já estava se separando... Não parece ter nenhum interesse financeiro na jogada. Será que ela não pensa no futuro dos filhos?
JUIZ J.: A Elza não é do tipo maternal.
Dr. GERALDO GALLO: Não. É do tipo passional. Sangue quente por trás daquela fachada fria. É do tipo que enfia uma faca no homem que a enganar. Meu Deus, como eu gostaria de conseguir desmascara-la. Mostrar onde está mentindo. Mostrar quem ela é.
JUIZ J.: Desculpe, Gallo, mas será que não está deixando isso virar um duelo pessoal entre você e ela?
Dr. GERALDO GALLO: Será? É possível. Ela é uma Mulher má e inteligente, apesar de não ter instrução. Do jeito que eu gosto. Criada em favela, sua moral é apenas levar a melhor. E a vida de um jovem pobre que venceu na vida, depende dos caprichos dessa MULHERZINHA...
JUIZ J.: Não creio que o júri tenha gostado dela.
Dr. GERALDO GALLO: Não, nisso você tem razão. Não creio que tenham gostado. Para início de conversa, ela é Mulher; e as juradas sempre desconfiam das outras MULHERES. E, não está sendo leal ao homem, ao príncipe que tirou a gata borralheira da zona. É um conto de fadas ao contrário. O brasileiro não suporta isso.
JUIZ J.: Então temos chances.
Dr. GERALDO GALLO: É. Mas não basta. Não há nenhuma corroboração para as declarações dele. De espécie alguma. Ele confessa que esteve com a Ronalda naquela noite, há impressões digitais dele por toda parte, sangue da vítima, os álibis dele são todos réus. A história do visto para o exterior foi mais uma cagada. A vítima faz uma denúncia por ameaça de morte e depois desaparece no sítio do cara. Não podia ser pior.
JUIZ J.: Concordo. E a explicação dele ficou longe de ser convincente.
Dr. GERALDO GALLO: (Oferecendo-lhe uma caixa de fósforos.) Tome aí, Zé .
JUIZ J.: Obrigado, Gallo.
Dr. GERALDO GALLO: Creio que tivemos um pouco de sorte com o Menor GANDULA.
JUIZ J.: Você quer dizer na interpretação dos fatos?
Dr. GERALDO GALLO: Exato. O menino mudou a versão várias vezes.
JUIZ J.: Você usou muito bem a questão do ciúme do Maca.
Dr. GERALDO GALLO: É. Ali nós ganhamos. Mas ele ganhou no resto. (JUIZ J. constata que não há fósforos na caixa, joga-a na lareira e guarda o charuto no bolso.) Não está fumando, Zé?
JUIZ J.: Não, agora não.
Dr. GERALDO GALLO: Zé Roberto, o que será que aconteceu realmente naquela noite? Será que foi realmente um desaparecimento? A polícia tem de admitir que poderia ter sido.
JUIZ J.: Mas tem certeza de que não foi e que raramente se enganam. Aquele DELEGADO está inteiramente convencido de que o Barbosa foi quem estrangulou a moça.
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Bem, ele pode estar esganado, digo, enganado.
JUIZ J.: Duvido.
Dr. GERALDO GALLO: Mas, nesse caso, quem está dizendo a verdade o Menor GANDULA ou a Elza? A mim parece que há duas respostas para isso.
JUIZ J.: Que são...?
Dr. GERALDO GALLO: Primeira, que ela inventou a coisa toda por que ficou com medo de ser condenada por cumplicidade.
JUIZ J.: Mas por certo ela não faria uma coisa dessas.
Dr. GERALDO GALLO: Bem, então por que ela fez isso? Somente vingança, a troco de perder uma vida de rainha?!
JUIZ J.: Bem, é provável que tenha mais coisas por trás disso.
Dr. GERALDO GALLO: Eu não creio que aquela Mulher vingativa e perigosa, que não hesita em acabar com a vida do pai dos filhos dela, hesitasse em acabar com a vida...
JUIZ J.: Santo Deus! Você quer dizer...?
Dr. GERALDO GALLO: Ela tinha muito mais motivações para matar a Ronalda ... O Barbosa só tinha a perder... Lembra do caso do Guilherme de Pádua, que foi defender a esposa grávida que tinha matado a tesouradas a amante dele, e acabou pegando uma pena braba? Pois é, acho que esse caso é parecido, e como no outro, a Mulher jogou a culpa no marido... Acho que Elza pensou que se continuasse a bater na tecla de que o Barbosa era inocente, os dois seriam condenados. Aí resolveu sacar primeiro, jogando a culpa no pobre do marido.
JUIZ J.: E o que faremos amanhã. Atiraremos também contra a Elza e adotamos essa versão?
Mulher Encapuzada: (Entra rapidamente e fecha a porta atrás de si, ela tem um capuz estilo ninja sobre a cabeça. Os dois levantam os braços pensando ser assalto) Perdão, Dr. GERALDO GALLO! Não é um assalto, vim trazer umas provas sobre o caso Barbosa que podem ajudar...
Dr. GERALDO GALLO: Quem é você?
Mulher Encapuzada: Nada de nomes. E se eu dissesse um nome, podia ser falso, não podia?
Dr. GERALDO GALLO: Como quiser, mas já descobri que a senhora é uma mulher... O que você sabe?
Mulher Encapuzada: Eu tenho uma coisa. Que é mais importante.
Dr. GERALDO GALLO: E poderíamos saber o que é?
Mulher Encapuzada: Sim, senhor! Eu estava no julgamento, hoje. E vi aquela vagabunda testemunhando. Toda metida a besta. Ela é má de verdade. Uma ingrata, isso é o que ela é.
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem. Mas quanto a essa informação especial que a senhora tem...
Mulher Encapuzada: É muito valiosa...
JUIZ J.: Temo que não tenhamos dinheiro no momento para comprá-la...
Mulher Encapuzada: Não é isso que eu quis dizer... É valiosa mais eu vou dar de bandeja para vocês...
Dr. GERALDO GALLO: Valiosa mas vai sair de graça?
Mulher Encapuzada: Acredite, é coisa quente...
Dr. GERALDO GALLO: Ah, sim. E a troco de quê a senhora vai nos dar de bandeja uma informação quente?
Mulher Encapuzada: Primeiro que eu sei que o Barbosa está quebrado, já gastou tudo com vocês... Depois eu sei que ele é inocente e não suporto injustiças... Segundo, que a Elza me odiava e eu odiava ela. (Abre a bolsa.) São cópias de mensagem de email e msm dela. É melhor eu ir, vocês tem que começar a trabalhar agora para fazer a defesa de amanhã. Essas cópias irão ajudar muito no depoimento do Maca.
Dr. GERALDO GALLO: Mensagens de ELZA pro Barbosa?
Mulher Encapuzada: Tá brincando? Coitado do trouxa do Barbosa, ela passou ele para trás direitinho. (Pisca.)
Dr. GERALDO GALLO: Muito bem, minha senhora, parece que não temos alternativa senão em acreditar na senhora (entrega as cópias) por enquanto. (Ele pega as cópias e começa a ler. JUIZ J. aproxima-se de Dr. GERALDO GALLO e espia por sobre seu ombro.) É incrível. É absolutamente incrível.
JUIZ J.: Que mulherzinha terrível.
Dr. GERALDO GALLO: (Para a Mulher Encapuzada.) Como as conseguiu?
Mulher Encapuzada: Não vou cagoetar quem me deu.
Dr. GERALDO GALLO: O que é que a senhora tem contra Elza de Souza Soares ?
Mulher Encapuzada: É uma traíra! Piranha e cachorra! Faltou algum peixe?
Dr. GERALDO GALLO: Ela lhe traiu?
Mulher Encapuzada: Traía todo mundo... E aí, vão ajudar ou não?
Dr. GERALDO GALLO: Eu creio que serão de muita utilidade. (Apresenta uma carta a JUIZ J.) Aqui, Zé; dê uma manjada. (A Mulher Encapuzada some pela porta.)
JUIZ J.: Teremos de provar a veracidade disso.
Dr. GERALDO GALLO: Precisamos do endereço de ip do computador...
JUIZ J.: (Virando-se.) Ora, onde é que ela foi?! Não pode ir embora sem nos dar maiores detalhes!
Dr. GERALDO GALLO: (Sai pela porta, chamando.) Senhora! Senhora!
JUIZ J.: Foi embora?
Dr. GERALDO GALLO: Sumiu. Ela é esperta... A gente poderia ter chamado a polícia e tê-la obrigado a depor como testemunha... Ela não queria aparecer de jeito nenhum...
JUIZ J.: Mas poderíamos protegê-la.
Dr. GERALDO GALLO: Protegê-la de quê? A gente nem sabe por que ela se esconde... Ela só queria ferrar a Elza.
JUIZ J.: E que bela figura é a tal ELZA! Mas finalmente temos algo em que nos agarrar. A melhor maneira de proceder...

Cena II

CENÁRIO: Fórum Lafayette, Tribunal do Júri. Na manhã seguinte.
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Meritíssimo, desde a suspensão da sessão, certas provas de natureza surpreendente chegaram-me às mãos. São provas tais que tomei a resolução de pedir a permissão do Meritíssimo para chamar um dos réus, cujo julgamento será posteriormente, para depor como testemunha de defesa do Sr. Barbosa.
Dr. GERALDO GALLO: Sr. Manuel Francisco, o senhor sabe que está sob juramento e não pode mentir?
MACA: Sei.
Dr. GERALDO GALLO: Vamos direto ao ponto, senhor Manuel Francisco. Já sabemos que o senhor e o menor GANDULA transportaram a Ronalda até o sítio do Barbosa no dia 09 de junho. Quanto a isso tanto a defesa quanto a promotoria concordam. As dúvidas são do que aconteceu lá depois que vocês chegaram.
MACA: Bom, a Ronalda desceu do carro e foi conversar com o Barbosa dentro da casa.
Dr. GERALDO GALLO: Então o senhor desmente a história da coronhada que o menor GANDULA teria dado na cabeça da Ronalda .
MACA: Isso foi invenção desse moleque.
Dr. GERALDO GALLO: Qual era o combinado para levarem a Ronalda até lá?
MACA: Foi fazer um acordo entre eles, como o Barbosa disse várias vezes.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor e o Barbosa são muito amigos?
MACA: Que nem carne e unha...
Dr. GERALDO GALLO: O senhor seria capaz de mentir para beneficiá-lo.
MACA: Não vou mentir em juízo.
Dr. GERALDO GALLO: O senhor chegou a fazer uma tatuagem nas costas com os dizeres: “Barbosa e Maca: A amizade está para o amor, como a prosa está para a poesia. E quem dirá que esta não lhe é superior?”. O que quer dizer isso?
MACA: É que a gente era que nem irmão, entende?
Dr. GERALDO GALLO: Se bem que essa frase está dizendo que o amor é superior à amizade... Mas vamos aos fatos. O que aconteceu naquela noite?
MACA: Bem, o Barbosa já estava na casa. Eu pus o bebê no colo e a Ronalda entrou...
Dr. GERALDO GALLO: E o senhor e a Elza também?
MACA: Não. A gente não queria se meter, senão podia sair briga com a Elza e a Ronalda . Aí só a Ronalda entrou e a gente ficou nos carros...
BARBOSA (sussurrando para si mesmo): Que diabo o Maca combinou com o advogado?
Dr. GERALDO GALLO: E então o Barbosa saiu sozinho, foi para o carro, onde estava a Elza, e a Ronalda ficou...
MACA: É a Ronalda ficou... O Barbosa passou por nós e disse: Agora é com vocês!
Dr. GERALDO GALLO: E você entrou com o bebê e ela disse que tinha combinado com o Barbosa que a criança ficaria no sítio.
MACA: Ela não disse nada...
Dr. GERALDO GALLO: Ela simplesmente deixou a criança, pegou carona e foi embora...
MACA: Não foi embora.
Dr. GERALDO GALLO: Então ela não disse nada, não foi embora naquela noite. Quando ela foi?
MACA: Quando o Bola veio buscar ela.
Dr. GERALDO GALLO: Ah, então o Sr. Vicente Mateus entrou na história para buscar ela?
BARBOSA(esfregando as mãos e sussurrando de novo): Ai, ai, ai Maca, o que cê tá inventando agora?
MACA: É o que ele tinha combinado com o Barbosa. De levar a Ronalda .
Dr. GERALDO GALLO: Para o Rio?
MACA: Não.
Dr. GERALDO GALLO: Para onde então?
MACA: Não sei. O Bola que levou ela.
Dr. GERALDO GALLO: E depois ninguém nunca mais a viu?
MACA: Não.
Dr. GERALDO GALLO: Então o senhor afirma que o menor GANDULA e a Elza mentiram aqui no Tribunal.
MACA: O menor, sim a Srª Elza não. (ouve-se um murmúrio entre os presentes)
BARBOSA (levantando-se): Maca! ( o Dr. Geraldo Gallo sinaliza com as mãos para que ele se sente e faça silêncio)
Dr. GERALDO GALLO: O senhor deve ter confundido os testemunhos dados ontem... O senhor tem certeza que quis dizer que a Elza não mentiu ontem? O testemunho dela é contrário ao teu! Você esqueceu que ela disse que o Barbosa ficou sozinho com a Ronalda na casa e depois voltou para o carro?
MACA: Eu também disse que ele ficou sozinho com ela e depois voltou para o carro.
Dr. GERALDO GALLO: Sim, mas o senhor disse que entrou, a Ronalda estava na casa, e ela não disse nada até que o Bola veio buscá-la.
MACA: Ela não disse nada porque estava morta e o Bola veio buscar o corpo para dar um sumiço.
BARBOSA (tentando partir para cima do Maca): Traidor! Mentiroso! (Dr. Geraldo Gallo vai até ele e diz algo em seu ouvido)
Dr. GERALDO GALLO (voltando para a frente do júri): O senhor está brincando conosco Sr. Manuel Francisco? Devo te advertir que...
MACA: Eu disse que eu estava lá fora esperando com o bebê e o menor e a Elza no outro carro. Ouvi uns gritos mas não quis me meter. O Barbosa mesmo dizia “quem nunca saiu na mão com uma mulher?”. Depois ele saiu sozinho e disse para mim e o menor: “Agora é com vocês! Acabou esse tormento!”. Eu entrei para entregar o filho para mãe e vi ela caída no chão. Desesperei, mas achei que ela tava só desmaiada. Mal deu tempo de eu pensar em chamar uma ambulância e chegou o tal do Bola, que devia tá esperando de fora a hora certa para agir. Ele chegou e disse “eu já acertei tudo com o Barbosa. Vim buscar o corpo.” Eu disse que eu não ia participar daquilo e ele disse que foi pago para fazer tudo sozinho.
Dr. GERALDO GALLO: Ótimo, Sr. Luiz, não tenho mais nenhuma pergunta.
JUIZ: Espere um momento, Dr. Geraldo Gallo. O senhor convocou uma testemunha de defesa, ele se transforma numa testemunha de acusação e o senhor diz ótimo e dispensa a testemunha? Olha eu devo dizer que em toda minha carreira, nunca presenciei tal cena. Mas se o senhor não tem mais nenhuma pergunta, meu dever é passar a palavra à Promotoria.
PROMOTOR XISTO: Não será necessário, Meritíssimo. O meu ilustre colega já fez o meu trabalho muito bem. E tão bem que acho que essa fase do julgamento já pode ser encerrada e passar os trabalhos para o júri popular que tenho certeza, não tem mais nenhuma dúvida quanto ao caso.
Dr. GERALDO GALLO: Ainda não! Eu apresentei e anexei novas provas ao processo no início dessa sessão e gostaria de esclarecê-las.
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Meritíssimo, devo objetar ao pedido do meu nobre colega. O caso já foi encerrado pela Promotoria e...

JUIZ: Sr. Promotor Xisto, não era minha intenção tomar uma decisão a respeito deste ponto sem observar a formalidade rotineira de pedir para ouvir seus comentários sobre o mesmo. Pois não,
Dr. GERALDO GALLO? (PROMOTOR XISTO senta-se.)

Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Meritíssimo, em um caso no qual provas vitais para o réu chegam às mãos de seus conselheiros legais a qualquer momento antes de o júri apresentar seu veredicto, minha posição é a de que tais provas não só são admissíveis, como também desejáveis. É extensa a jurisprudência quanto a esse direito da ampla defesa.
JUIZ: Conheço muito bem os princípios da ampla defesa e do contraditório. Gostaria de ouvir a Promotoria, agora, Sr. Promotor Xisto.
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Respeitosamente sugiro, Meritíssimo, que o meu nobre colega, está apenas postergando e desgastando os trabalhos do júri, para nada. Não há como salvar o réu! Que provas milagrosas serão essas?
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Mensagens eletrônicas, Meritíssimo. Cópias de mensagens escritas por Elza de Souza Soares.
JUIZ: Gostaria de ver essas mensagens a que se refere, Dr. GERALDO GALLO .
(Dr. GERALDO GALLO e PROMOTOR XISTO sentam-se. O MEIRINHO levanta-se, cruza até Dr. GERALDO GALLO , pega as cópias, entrega-as ao
ESCRIVÃO, que as leva ao JUIZ. O JUIZ estuda as cartas. O MEIRINHO retoma seu lugar.)
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Meu nobre colega teve a esperteza de anexar essas supostas mensagens ao processo, aos 45 minutos do segundo tempo. Eu não tive vista dessas tais provas.
JUIZ: O senhor tomará conhecimento do conteúdo dessas mensagens neste exato instante. Elas serão lidas aqui e agora. (PROMOTOR XISTO senta-se.)
Dr. GERALDO GALLO: (Levantando-se.) Chamem Elza de Souza Soares.
MEIRINHO: Elza de Souza Soares!
JUIZ: Se estas mensagem forem autênticas, ficam levantados vários problemas muito graves. (Entrega as cópias ao ESCRIVÃO.O ESCRIVÃO entrega as cópias ao MEIRINHO, que as devolve a Dr. GERALDO GALLO . Durante a ligeira espera que se segue BARBOSA parece muito agitado. Ele fala com o GUARDA, depois cobre o rosto com as mãos. O MEIRINHO senta-se em seu banco. Dr. GERALDO GALLO levanta-se, fala com BARBOSA e o acalma. BARBOSA sacode a cabeça e parece perturbado e preocupado. ELZA entra e se dirige ao banco das testemunhas.)
Dr. GERALDO GALLO: Sra. Elza, a senhora compreende que continua
sob juramento?
ELZA : Compreendo.
JUIZ: Elza de Souza Soares, foi chamada a voltar ao banco das
testemunhas, a fim de que Dr. GERALDO GALLO pudesse fazer-lhe mais
algumas perguntas.
Dr. GERALDO GALLO: Sra. Elza, qual era o seu relacionamento com o Sr. Manuel Francisco?
ELZA : Relacionamento? Nenhum. Ele era amigo e empregado do meu marido. Não sei para que isso agora? Me chamar aqui de novo...
Dr. GERALDO GALLO: A senhora não tinha nenhum outro vínculo com ele?
ELZA : Claro que não.
Dr. GERALDO GALLO: Tem absoluta certeza disso?
ELZA : Eu o via raramente. Nunca dei muita intimidade. Nunca.
Dr. GERALDO GALLO: E, no entanto, correspondia por email e msm com ele?
ELZA : (Duvidosa.) Pela internet a gente manda mensagem até para desconhecido. Não me lembro de nenhuma em especial. Às vezes eu repassava emails para uma lista de contatos, sem nem ler. Não me lembro de ter mandado nenhuma esses dias.
Dr. GERALDO GALLO: No entanto, tenho uma aqui de uma semana atrás.
ELZA : (Assustada.) O que é que o senhor tem aí?
Dr. GERALDO GALLO: Uma cópia de mensagem.
ELZA : Que mensagem, de quem, o que diz aí?
Dr. GERALDO GALLO: Estou falando de uma mensagem sua da última semana para o Sr. Manuel Francisco. A senhora talvez se lembre dela.
ELZA : Não me lembro de nada. Por quê?
Dr. GERALDO GALLO: Sugiro que, nesta data, a senhora escreveu uma mensagem sobre esse júri para o Sr. Manuel Francisco.
ELZA : Não fiz nada disso. O senhor esta contando mentiras.
Não sei o que está querendo dizer.
Dr. GERALDO GALLO: Essa mensagem é parte de toda uma série, escrita ao mesmo homem, ao longo de considerável período de tempo. Todas mostrando muita coerência na evolução de suas ações e dos fatos.
ELZA : (Agitada.) Mentira! Tudo mentira!
Dr. GERALDO GALLO: As mensagens dão a impressão de que a senhora tivesse uma — amizade muito íntima com o Maca.
BARBOSA: (Levantando-se.) Vagabunda! (O GUARDA levanta-se e tenta conter BARBOSA.)
JUIZ: O prisioneiro, em seu próprio interesse, permanecerá sentado.
(BARBOSA e o GUARDA sentam-se.)
Dr. GERALDO GALLO: Fique tranqüila. Não vou ler detalhes íntimos da sua correspondência eletrônica. Estou interessado apenas em alguns trechos. (Lendo teatralmente)
E aí tesão da minha vida! Enquanto o trouxa do meu marido está achando que tá me traindo agora com aquelas piranhas. Aproveite e venha aqui dar uma traidinha comigo. Chumbo trocado não dói! Etc.”
ELZA : É mentira — eu nunca escrevi isso. Como é que o senhor conseguiu isso? Quem te deu?
Dr. GERALDO GALLO: O método por meio do qual a carta veio ter às minhas mãos é totalmente irrelevante.
ELZA : O senhor roubou. Além de mentiroso, é ladrão. Ou será que alguma piranha é que te deu? Foi isso, não foi?
JUIZ: Faça o favor de limitar-se a responder às perguntas feitas
pelo advogado.
ELZA : Mas eu não vou escutar nada disso.
JUIZ: Continue, Dr. GERALDO GALLO .
Dr. GERALDO GALLO: Até aqui a senhora só ouviu a primeira das mensagens. Devo compreender que nega definitivamente tê-la escrito?
ELZA : É claro que nunca escrevi isso. É falsa. É uma fraude esse montão de mentiras — de mentiras inventadas por uma mulher ciumenta.
Dr. GERALDO GALLO: A minha sugestão é a de que a senhora é que esteve mentindo por motivos de ciúme e vingança. A senhora mentiu flagrante e persistentemente neste Tribunal, estando sob juramento. E a razão pela qual mentiu se torna clara por meio — destas mensagens.
ELZA : O senhor está louco. Por que haveria eu de escrever um monte de asneiras?
Dr. GERALDO GALLO: Porque a senhora já se vingava das traições do seu marido, seduzindo o seu melhor amigo! Porque a senhora fez a cabeça do Maca para trair o seu melhor amigo! Porque a senhora tramou contra o seu marido! Porque a senhora planejou Deus sabe o que para desaparecer com a Srª Ronalda e incriminar o seu marido e ficar com patrimônio dele! Que escreveu inclusive sobre a armação de ter lavado o casaco sujo de sangue a pedido do Barbosa!
ELZA : (Furiosa.) Eu nunca escrevi nada disso. Eu não sou lavadeira! Eu tenho classe! Eu escrevi que ele pediu para a diarista... (Sua voz some. Todos os olhares do Tribunal se voltam para ela.)
Dr. GERALDO GALLO: (Triunfante.) Quer dizer então que sabe o que está escrito na mensagem — mesmo antes de eu a ler.
ELZA : Desgraçado! Desgraçado! Maldito!
BARBOSA: (Gritando.) Piranha! Vagabunda! Traidora!
ELZA : (Olhando selvagemente em torno.) Deixem-me sair
daqui — eu quero ir embora. (Sai do recinto das testemunhas.
O MEIRINHO levanta-se e segura ELZA .)
JUIZ: Meirinho, dê uma cadeira à testemunha. (ELZA cai na cadeira, soluça histericamente e esconde o rosto entre as mãos. O MEIRINHO cruza e senta-se)
JUIZ: Dr. GERALDO GALLO , agora leia as mensagens em voz alta para que a promotoria e o júri possa ouvir.
Dr. GERALDO GALLO: (Lendo.) Temos aqui a mais recente: “Amor da minha vida. Agora falta pouco. Seu julgamento é depois de amanhã. Basta dizer o que combinamos e vai ser a pá de cal no Barbosa. Nossa versão vai ser idêntica. Ninguém do júri vai duvidar do testemunho do melhor amigo dele. Você e eu nos safamos, e vamos torrar o patrimônio daquele OTÁRIO.
JUIZ: Elza de Souza Soares, quer fazer o favor de voltar ao banco das
testemunhas? (Ela volta ao banco das testemunhas.) A
senhora ouviu a leitura da mensagem. O que tem a dizer?
ELZA : Nada.
BARBOSA: Cachorra! Eu te tirei da zona, sua puta!
ELZA : (Cuspindo as palavras.) Cachorro é você seu otário. E puta é a tua mãe! Você que nunca saiu da zona! Só vivia metido com piranha.
Dr. GERALDO GALLO: Meritíssimo, em relação à Elza não tenho mais nenhuma pergunta. Mas será preciso chamar novamente o Sr. Manuel Francisco.
JUIZ: Faça entrar a testemunha Manuel Francisco.
BARBOSA: Traidor! Judas! Canalha!
Dr. GERALDO GALLO: Sr. Manuel Francisco o senhor reconhece essas mensagens? (entrega as cópias para Maca)
MACA (abalado, começando a chorar): Sim. São todas da Elza para mim.
Dr. GERALDO GALLO: E lembra o que está escrito nelas?
MACA: Lembro.
BARBOSA: Você era um irmão pra mim, cara!
Dr. GERALDO GALLO: Então não vai ser preciso relê-las.
MACA: Não precisa.
Dr. GERALDO GALLO: E o senhor atesta que tudo o que está escrito aqui, aconteceu realmente, do jeito que está.
MACA: Quase tudo.
Dr. GERALDO GALLO: Toda a armação para condenar o Barbosa? A sua relação afetiva com a Elza?
MACA: Na verdade, eu que seduzi a Elza. Eu queria mostrar pro Barbosa que ela era uma vagabunda e que não gostava dele. Era outra que só queria a fama e o dinheiro dele.
Elza: Desgraçado!
Dr. GERALDO GALLO: E então foi guardando as mensagens e obedecendo a Elza em tudo o que ela planejava? Mas não precisava ir tão longe, precisava?
MACA: Mas é que eu também queria resolver o problema da Ronalda , aquela outra vagabunda que queria sugar o Barbosa. Aí eu matava dois coelhos com uma cajadada só.
Dr. GERALDO GALLO: Resolver de que jeito o problema da Ronalda .
MACA: Acabar com aquele tormento. Resolver pra sempre. Dar fim. Um sumiço. Matar ela.
Dr. GERALDO GALLO: Por sua conta própria?
MACA: Sim. No sítio, naquela noite tudo aconteceu mais ou menos como o Barbosa falou. Até a hora que ele foi embora com a Elza. A Ronalda ficou em casa. O primo do Barbosa tava cochilando no carro. Eu entrei, pus o bebê no sofá. Aí, eu fiquei esperando a hora certa. Então a Ronalda falou que ia tirar até as cuecas do Barbosa e chamou ele de otário. Eu peguei a arma e dei uma coronhada na cabeça dela. Ela apagou. Depois liguei para o Bola, pois tava combinado dele terminar o serviço e sumir com o corpo.
PROMOTOR XISTO: E vai dizer que o Barbosa não sabia que você ia resolver tudo do seu jeito?
MACA: Sabia não.
PROMOTOR XISTO: O senhor ontem, quando deu uma outra versão para o crime, disse que faria qualquer coisa para beneficiar o Barbosa. Mas que não ia mentir. O senhor disse a verdade quanto à beneficiar seu ídolo Barbosa. Mas está mentindo agora. O que o senhor sente pelo Barbosa? Qual a sua relação com ele?
MACA: Eu sou fã do Barbosa desde moleque. A gente começou do nada, eu e ele. Ele foi subindo e eu sempre ajudando ele, e ele sempre me levando junto a cada degrau que subia, sempre do lado dele. Ele ficou famoso, rico, mas não se esqueceu de mim. Me levou junto. Confiava em mim. Deixava toda a área do dinheiro na minha mão. Eu nunca tirei um centavo para mim e ele nunca me cobrou nada. Amizade como essa não existe mais.
PROMOTOR XISTO: Realmente não. Mas o que o senhor tatuou nas costas diz que o Amor é superior à Amizade...
MACA: É que eu amo ele! Ele é tudo para mim! Meu ídolo, meu irmão, meu pai, meu filho! Vocês não entendem! Ele é o amor da minha vida! Eu daria minha vida pra salvar a dele! Faria qualquer coisa por ele! Tudo o que eu fiz foi para proteger ele! (ajoelhando-se com as mãos sobre o rosto, soluçando as palavras). Era tão bom quando a gente era criança e vivia só de jogar bola... Só os amigos... Só um mundo de meninos, sem mulher para atrapalhar... As mulheres só entraram na nossa vida para estragar ela...
PROMOTOR XISTO: Meritíssimo. A testemunha está sob forte comoção e não tem condições psicológicas de continuar. E nem precisaria. Ficou claro, diante do que este rapaz fez e disse. Ele não pode testemunhar a favor do réu, pois acabou de confessar que mentiria, mataria, morreria para protegê-lo. E certamente iria preso no lugar do seu amor. E nem as tais mensagens eletrônicas podem ser levadas em consideração. Não há meio seguro de se comprovar a autoria delas.
JUIZ (sussurrando para o escrivão): Confesso que eu não estou entendendo mais nada dessa história. Ainda bem que não sou eu quem vai julgar se ele é culpado ou inocente. Deixo nas mãos dos jurados e lavo as minhas.
Dr. GERALDO GALLO: Meritíssimo, eu gostaria de dirigir uma última vez a palavra aos jurados (o Juiz acena que sim com a cabeça). Eu gostaria de começar com o nascimento do meu cliente... O Sr. Barbosa nasceu numa cidade da periferia da capital mineira. Aos três meses foi abandonado pela mãe e entregue à avó pobre que o criou. Tinha tudo para se tornar um marginal, um bandido, mas acreditou num sonho de criança vendido pelas tvs e rádios que ele assistia quando criança: ser um jogador de futebol. E esse é o único sonho possível de uma criança pobre em uma periferia violenta. Não tinha acesso a boas escolas para sonhar com outra coisa, assim como milhões de crianças igual a ele. Não tinha uma boa educação dentro de casa, nem fora dela. Foi criado entre essas duas realidades: a que a tevê vendia, uma realidade onde cada um vale pelo que tem, e a realidade em que ele vivia, subjugada aos valores e à moral que a tevê transmitia, enfim que nossa sociedade transmitia. E que valores são esses, que moral é essa? Barbosa cresceu acreditando que quem não tinha um tênis da propaganda, a calça de marca, uma camisa de grife, um óculos importado, um carro bacana, não podia ser feliz, não podia ser alguém, não podia existir. Mas o pior de tudo a mídia educou milhões de crianças como o Barbosa a acreditar que quem tivesse além de dinheiro, tivesse também a fama, era quase um deus. Estaria acima do bem e do mal. Barbosa era um entre essas milhões de crianças brasileiras e por acaso do destino e da natureza, nasceu com um talento especial para o único sonho que podia salvá-lo da miséria. Ser um jogador famoso. Entregou toda a sua vida e dedicou todos os seus esforços a esse sonho. Se desse errado, estaria perdido na vida como um garoto pobre, sem instrução e condenado à marginalidade. Porém ele conseguiu. Contra tudo e contra todos ele conseguiu e foi viver a vida que a tevê o prometeu: Um homem rico e famoso, ou seja, que podia tudo e estava acima de tudo, talvez até da lei. E essa mesma tevê passou a assediá-lo, a explorá-lo em troca de audiência, fosse ele mocinho ou bandido na história. Mas todos sabemos que a história de um famoso do mal dá muito mais audiência que a de um mocinho do bem. A mesma fama que a tevê lhe deu é que o cercou de falsos amigos e interesseiros e interesseiras de todo tipo, que apenas o bajulavam e nunca o chamavam à realidade, deixando-o viver a ilusão do mundo da fama. E fruto disso, o meu cliente vítima de uma dessas interesseiras, que armou-lhe uma armadilha para extorqui-lo, foi vítima da própria fama e dos meios de comunicação. (pausa) Posteriormente, ocorreu um caso trivial que acontece diariamente na nossa sociedade violenta, que é o desaparecimento de uma pessoa... E essa pessoa tinha por profissão receber em lugares ocultos, homens de todos os tipos, sujeita a se deparar a qualquer momento com um psicopata. Mas a tevê não se interessa por contar a verdade. A verdade não dá audiência! Então, assim que soube do desaparecimento dessa profissional do sexo, a mídia já apontou o seu dedo para o meu cliente. Investigou-o sem ter capacidade de investigação, seduziu policiais e trouxe-os para o seu lado, e depois acusou-o, incriminou-o, processou-o, julgou-o, e condenou-o em poucos dias, perante a opinião pública, o que levou à prisão injusta do meu cliente. As instituições que deveriam garantir um processo justo e imparcial, buscar a justiça enfim, simplesmente tornaram-se apenas os referendadores da opinião da mídia. Tornaram-se o cenário nesse espetáculo dirigido por ela. Mas advirto aos jurados que estão me ouvindo. Qualquer inocente poderá vir a estar no lugar que o Barbosa está hoje! Qualquer um pode ter alguém de suas relações desaparecido e ser alvo desse tribunal midiático! Ser acusado, incriminado, processado, julgado e condenado pela mídia! Porque foi isto que aconteceu neste caso! Não há eu repito, não há sequer provas de que existiu um crime, e muito menos que meu cliente está envolvido com um desaparecimento, que os interesses da mídia quiseram transformar em assassinato! E no entanto, o Sr. Barbosa entrou nesse Tribunal já condenado por assassinato. Mas vocês, senhores jurados tem o poder e o dever de fazer a justiça! E justiça seja feita!
JUIZ: Deseja se dirigir aos jurados uma última vez, Sr. Promotor?
PROMOTOR XISTO: (Levantando-se.) Na verdade, Meritíssimo, julgo desnecessário. (dirigindo-se aos jurados) Meu ilustre colega sequer entrou no mérito dos fatos em seu discurso. Não questionou nenhum ponto do último depoimento revelador do Sr. Manuel Francisco, que praticamente confessa que assumiu um crime para livrar o seu ídolo da cadeia. Quanto ao réu aqui presente, não resta mais nenhuma dúvida. Quanto aos outros indiciados, Sr. Manuel Francisco, o menor J., a Srª Elza, dentre outros, deixemos o seu julgamento para a data marcada...
JUIZ: Devo lembrar aos réus que a sentença será prolatada para conjunto dos indiciados nesse crime, após todos os julgamentos agendados e obviamente após o veredicto dos jurados.
(Enquanto Dr. GERALDO GALLO fala as luzes baixam até apagarem-se por completo. Após alguns segundos, as luzes se acendem. Os jurados, que haviam saído, estão retomando seus lugares.)
ESCRIVÃO: (Levantando-se.) Peço aos réus que se levantem. Senhores Jurados, estão todos de acordo quanto ao seu veredicto?
JURADO: (Levantando-se.) Estamos.
JUIZ: Condeno a SRª Elza de Souza Soares a 06 meses de prisão ao crime de perjúrio, por mentir em juízo. Condeno o menor à época do crime e já em idade civil, a 06 meses de prestação de serviços comunitários, também por perjúrio. Condeno o Senhor Vicente Mateus, a 10 anos de prisão por ocultação de cadáver. Condeno o Sr. Manuel Francisco Garrincha pelo assassinato da Srª Ronalda Domingues e tendo em vista que os jurados concluíram que não houve premeditação, aplico-lhe a pena de 18 anos de prisão. E finalmente, quanto ao último réu, o Sr. Barbosa de Souza Soares... (burburinho no Tribunal) Silêncio no recinto! (batendo o martelo). Condeno o Sr. Barbosa de Souza Soares pela participação direta no assassinato da Srª Ronalda Domingues, a 18 anos de prisão! (Levanta-se.)
(Todos ficam de pé. O JUIZ curva-se para o Tribunal e sai, seguido por quase todos)
MACA(correndo, já algemado e sorrindo, na direção do advogado): Doutor! Doutor! Será que o senhor daria um jeito para eu ficar na mesma cela do Barbosa?
Dr. GERALDO GALLO: As celas na penitenciária são individuais, meu rapaz...
MACA: Uma cela do lado? No mesmo pavilhão pelo menos? (sendo puxado pelo policial).
Dr. GERALDO GALLO: Vou ver o que posso fazer... (todos saem à exceção do Dr. Geraldo Gallo e do Juiz J.)
Dr. GERALDO GALLO: É colega... Perdemos...
JUIZ J.: Dessa vez eu fiquei até com remorso de ter cobrado do cliente pelos serviços do Juiz J.
Dr. GERALDO GALLO: Não se martirize, José Roberto. Nós fizemos um bom trabalho. Saímos até melhor do que se você fosse um Juiz de verdade subornado pela defesa... Nem se o próprio Juiz que presidiu o júri tivesse sido comprado, ele poderia ter feito nada.
JUIZ J.: Mas para aliviar meu sentimento de culpa, darei assistência jurídica gratuita ao Barbosa, enquanto ele estiver preso...
Dr. GERALDO GALLO: Mas ele ainda deixou um bom patrimônio...
JUIZ J.: E você acha que aquela lá vai pagar advogado ao Barbosa? Vai dizer que o patrimônio é dela e dos filhos... Não vai dar um tostão! Vai deixá-lo apodrecer na cadeia. (as luzes se apagam e as cortinas se fecham).
Dr. GERALDO GALLO: Mas sabe o que mais me intriga nessa história? É que o Barbosa é meio bronco, mas não iria ser tão idiota a ponto de matar uma mulher para não dar pensão alimentícia... Apenas por isso, nunca... Há alguma coisa que essa mulher sabia, e por isso ela foi morta, e ninguém nunca ficará sabendo da verdade... Por que o Barbosa, realmente a matou? (as cortinas se fecham).

Cena III


(As cortinas se abrem: Uma mulher bem vestida com um papel na mão como se estivesse numa rua, procura um endereço. Elza, um pouco envelhecida está parada como se na porta de uma casa).
Mulher: Esta casa ainda é do Barbosa goleiro?
ELZA : Não. Esta casa pertence à Dr.ª Elza de Souza Soares, que sou eu, e ao meu marido, Dr. Ricardo Avelange, conhecido como Dr. Gandula.
Mulher: Elza! É você mesma! Não se lembra de mim?
ELZA : Seu rosto não me é estranho...
Mulher: É que eu não venho ao Brasil há mais de quinze anos! Eu sou a Ronalda , lembra?! A Ronalda Domingues!
ELZA (como se tivesse vendo um fantasma, pondo a mão na boca): Meu Deus do céu! Ronalda ...
Mulher: Quê é isso? Parece que viu um fantasma...
ELZA: Mas você é uma fantasma! Eu não tou acreditando...
Mulher: Como assim?
ELZA: Você foi morta naquela noite... O Barbosa e o Maca foram condenados...
Mulher: Que história é essa?
ELZA: Você desapareceu naquela noite no sítio. E os dois foram condenados pelo seu assassinato.
Mulher: Você está brincando!?
ELZA: O que aconteceu naquela noite?
Mulher: Ah, eu me lembro perfeitamente. Pois foi a última noite minha no Brasil. A última noite que vi meu bebê... Meu bebê... Deve estar com 16 anos... Eu vim procurá-lo... Onde ele está?
ELZA: Primeiro me fala o que aconteceu aquela noite!
Mulher: O que eu combinei com o Barbosa... Ele me deu uma boa quantia para eu sumir do Brasil, até aqueles escândalos serem esquecidos, e ele fechar a transferência dele para a Europa. Só que eu resolvi deixar o bebê pra ele cuidar para eu poder sumir do mapa... Aí eu viajei pro exterior, encontrei com um gringo rico por lá e decidi recomeçar uma vida nova longe do Brasil. Eu tava cheia do Brasil. Na época eu estava na boca do povo e da imprensa como uma maria-chuteira que tava dando o golpe da barriga no Barbosa, como garota de programa e atriz de filme pornô de terceira. Só coisa ruim... Pra completar, meu pai tava sendo processado por pedofilia da própria filha... O gringo gostou de mim, me pediu em casamento e eu me dei bem. E estou voltando depois de 15 anos. Mas e o meu filho? E que história é essa de assassinato...
ELZA: Seu filho com o Barbosa?
Mulher: Eu nunca pude saber se era mesmo do Barbosa...
ELZA: Foi criado pela avó, sua mãe no Mato-Grosso...
Mulher: Minha mãe... Coitada...
ELZA: Coitado do Barbosa e do Maca...
Mulher: Quer dizer que é verdade? Pensaram que eu tinha sido assassinada e o Barbosa foi condenado? Mas como foi isso?
ELZA: Você sumiu sem deixar rastro, o Maca ficou louco e confessou o crime...
Mulher: Meu Deus! Mas eles já estão soltos? Onde estão?
ELZA: Pegaram 18 anos. Estão presos... Quer dizer, o Maca morreu numa rebelião, tentando proteger o Barbosa...
Mulher: Nossa Senhora, preciso corrigir esse erro agora! Coitado do Barbosa! Ele tem advogado, preciso procurá-lo?
ELZA: O Barbosa? Desde que foi preso e seu patrimônio bloqueado para os filhos, nunca mais teve advogado particular, só defensoria pública... Aí já viu, né?
Mulher: Preciso contratar um advogado agora! Você conhece um? Preciso ver o Barbosa agora! ...Meu Deus, se ele me ver, aí que vai querer me matar, mesmo...
ELZA: Não vai não. Isto eu te garanto...
Mulher: Me dê o telefone de qualquer advogado, pelo amor de Deus! (saem. As cortinas se fecham.)

Cena IV

As cortinas se abrem, mostrando Ronalda e o advogado, o ex-juiz de direito Arnaldo César, velho e já aposentado, estão sentados atrás de uma mesa).
POLICIAL (sai de cena e apenas ouve sua voz): Visita para você goleiro!
BARBOSA(com voz humilde ): Quem é?
POLICIAL: Acho que são advogados... (entra em cena trazendo Barbosa pela mão, que usa uma venda nos olhos Barbosa está de cabelos grisalhos e tem uma venda nos olhos, está cego. Ele se senta em uma cadeira em frente da cadeira de Ronalda . O policial se dirige para Ronalda e o Dr. Arnaldo) ...Espero que os doutores consigam soltá-lo, ele está cego há muito tempo, esse pobre não pode fazer mal a ninguém lá fora... É um absurdo deixarem um cego preso (sai de cena).
RONALDA : Cego? Você ficou cego Barbosa?



BARBOSA: Foi numa rebelião... Quem é a senhora, sua voz me lembra não sei quem é...
RONALDA : Eu e o Dr. Arnaldo viemos tentar te soltar, Barbosa. E pode acreditar que vamos conseguir. O Dr. Arnaldo é ex-juiz de direito te tira daqui rapidinho...
BARBOSA: Mas eu não quero ser solto... O que eu vou fazer cego lá fora? Não tenho dinheiro, meus filhos nem me conhecem e nem vão querer saber de mim, ninguém de minha família me visita há anos. Quem vai querer cuidar de um cego pobre? Aqui, eu sou amigo de todo mundo, ninguém faz mal para mim, posso comer e ir na privada sem ajuda de ninguém, posso andar sozinho pelo pavilhão, sem ser atropelado, pelo pátio, às vezes ainda sirvo de goleiro na pelada. Não pelo amor de Deus! Não façam nada para me soltar... Mas sua voz... Eu lembro da onde?
Dr. ARNALDO: De qualquer forma, sua pena acaba dentro de uns dois anos, Barbosa... E você vai ter de sair...
BARBOSA: Pelo amor de Deus! Vocês não podem fazer isso comigo! Prefiro a morte! Não!
RONALDA : Olha, Barbosa, e o seu filho que mora no Mato-Grosso? Eu te levo até ele! Eu tenho certeza de que ele vai te aceitar! Eu pago todas as suas despesas!
BARBOSA: Filho, que filho?
RONALDA : O seu filho com a Ronalda, ora!
BARBOSA: Nunca tive filho com a Ronalda ... O DNA saiu pouco depois que eu fui preso e deu negativo... Ronalda ... Ronalda ... Qual o nome da senhora? A sua voz lembra a voz da minha mãe... Minha mãe...
RONALDA (em lágrimas): Isso não tem importância, Barbosa. Eu vim para te ajudar. Te tirar daqui, te dar uma casinha, uma pensãozinha para você se manter... Barbosa, sua mãe o abandonou aos três meses de nascido... (chora com as mãos no rosto)
BARBOSA (sussurrando para si como se tentando lembrar): Ronalda ... Ronalda ... Minha mãe... ( e num arranque pula sobre Ronalda estrangulando-a com as mãos. Dr. Arnaldo tenta impedi-lo mas não consegue. Barbosa a enforca, deixa-a caída, levanta-se e sai). Ninguém vai me tirar daqui! Ninguém vai me tirar mais nada! Não sou herói, nem bandido! Ninguém é inocente, ninguém é culpado! Todo mundo é inocente e culpado... (sua voz vai se abaixando, enquanto ele sai, e as cortinas são fechadas.)