terça-feira, 1 de novembro de 2011

A ÚLTIMA CANOA DO ARASSUAHY


O vivido existira na fronteira do cerrado encaracolado com a caatinga, no fecho do derradeiro quartel do século dezenove... No relato que lembrarei aqui, tentarei ofertar, com o pouco passado que me sobrou, os gestos da fala e o espírito de ver a vida daqueles homens daquele lugar, naqueles tempos...
O rio Arassuahy nunca dera pé, vazão à navegação, com os seus funis, chupões e uma rede de rodamoinhos imersos. Mas, na correnteza empedrada e encachoeirada, teimava-se canoando...
Eram os vindos de 1900, e eu me achei num daqueles canoões de cinquenta braças de comprimento. Eu descia de Belmonte na Bahia contra a corrente, rio acima, com a tenência de magistrar na recém emancipada cidade de Arassuahy. A estrada era o rio. O canoão trazia de Arassuahy os produtos do sertão, carne de sol, latadas de carne de porco conservadas em banha, feijão, arroz de sequeiro, tonéis de cachaça, couro cru, pequi, rapadura e outros sortimentos. E do porto de Belmonte, encanoaram naquela madrugadinha, além deste humilde professor, sacas de sal, fazenda de panos, canecas e panelas de alumínio, garrafas de barbitúricos, mercadorias de mascates e outras indústrias.
A viagem custava longa, e logo de entrada, puxei amizade e principiei um prosear com um dos canoeiros, quando o sol ainda paria a manhã. Eu queria mais orelhar que bater a língua e fui escutando:
- Nosso pai já era remador, foi dele que herdei essa canoa, e nessa lida se come e se dorme na canoa. De sorte que ele conheceu minha mãe fazendo uma travessia... Se olharam, se enamoraram e se amancebaram. Meu pai ainda não detinha patrimônio e a valença foi habitarem a canoa numa barraca armada perto da popa, onde meu pai guiava. O resto da tripulação dormia mais adiante. Entonce minha mãe virou tripulação e ficou de cozinheira e lavadeira, mas nunca se negou a pegar no cabo do remo na urgência da precisão. Pois os dois me sinceraram que eu fui embarrigado e parido naquela barraca. E dispois, diversas pessoas sensatas testemunharam a informação. Do que eu mesmo me alembro, era d´eu, desde que me tenho por gente, brincando, pescando dentro da canoa ou tomando banho no rio. Essa vida, esse rio, não entendo onde nasce, não sei das suas cabeceiras, nem nunca vi o seu final. Dizem que é no mar... Esse tempo, esse lugar, vim aparecer aqui. Mal, mal, mirei os olhos dos meus pais e fecharam. Sei que fui menino e aprendi a alegria da luta na labuta...
Havia leitos onde a braça do rio se abria em mãos e dedos, e veias que sangravam espumantes entre cardumes de barbatanas de rochas; à flor d’água ou afogadas. O sol começava a sangrar nos horizontes.
- Não conhece o mar? - O céu azulava no horizonte d´água do rio.
Noutras corredeiras ele se espraiava e se acelerava sobre calhaus de cristal. Estreitafundava-se, aprumando, encurvando, serepentinava entre molduras arenosas numa margem, lajedas noutra banda, acolá sobrancelhado por vegetação ribeira.
- Não, porque além da canoa de meu pai, herdei esse trecho de rio que começa antes da foz e termina num encachoeirado, onde se faz a baldeação das gentes e das mercadorias pra outra canoa. Remo da hora que acordo até dormir, preparamo e cumemo o feijão com toucinho e miudezas de porco, tomém aqui dentro.
Garças a esfumaçar em nuvens brancas à bicada da proa, arengueiros ao vento em silvos, depenando a sonsidão apavorável das marrecas.
- Mas de vez em quando você desce né?
O Socó em galope rasante sobre a tona, à frente da linha da canoa, querendo-a carruagem aquática, fingido-se desafiante, perseguido, guia voluntário, ou o que sei lá.
- Num dá, quando tô na baldeação do encachoeirado é a conta de trocar as mercadoria com a outra canoa. Passamo as nossa pra ela e as dela pra nossa e volto rio abaixo. E quando chego no Porto das Canoas, é a conta de descarregar a mercadoria e carregar com outra.
As Verdadeiras gemelancolizam a paisagem pousada nas árvores praieiras.
- Mas como cê faz pra visitar a cidade, conhecer as coisas da vida?
O bote em curva, para o fundo, do medroso ( já que medonho) jacaré. E ilhas de seribas em perpétuo banho no ralo do rio.
- Pra te ser verdadeiro, eu não nem nunca não, mas uma vez pisei em terra pra caminhar e meu estambo imbruiou tanto que gurmitei até as tripas. E dispois disso, nem vê!
Há passagens camaleônicas onde o canoeiro preto fica pardo; o pardo, branco e o branco entomateia.
- Mas cumé que cê vive assim criatura?
Mesmo para o piloto que já esqueceu a cor da terra: Junto à barra do Pontal, onde o arassuahy se jequitinhonha, um muro natural ponteia o rio, derrobando uma queda de mais de metro d’água. Um língua na banguela das águas, bem no meio é a única passagem para o serpentismo das canoas: É o Capoeirão, malafamado pelas rasteiras fatais.
- Vivi vivendo, vendo minhas mãos crescendo, meus braços engrossando, cabelos branqueando, tudo sem minha vontade, sem poder fazer nada, que nem num canoão sem remos... Mas me criei na força, sem assentar pra pensar, nem ter medo, entristecer, nem com doença... nunca dei prosa. Só na galopada, só no sanguente! Acho bão, o agir no dia, com a cabaça da cabeça no sol quente, com o trote do corpo suando. E de noite, durmo fundo de cansado... Enfrentando tudo que me invoca, com brabeza, de peito cheio, sem dá pra trás... A coragem vigora com o hábito e a covardia, tomém! Mas óia: Vista aberta e fala fechada em toda piscada...
Mais águas, avista-se o Passo Do Frade, rocha metida a busto, que não passa o pé em, nem batiza ninguém.
- Mas cê não tem curiosidade de conhece gentes novas, aventuras?
Depois, o Cubangos, estreito arquitetado pela natureza, no jeito do homem redear uma ponte. Inriba de São Tumé abisma um encachoeirado de mais de uma légua de ribanceira. Incontáveis canais e rochas batizados de Labirinto: Se o piloto não alinhar o caminho das águas, busca a procura, acha o das pedras, perde o prumo, o remo, o rumo, a carga, a fama, as perdas e até a vida. Durante quinze minutos de tempo (horas pelo medo) o piloto inunda a vista só da água, os proeiros de varas vão abrindo picadas para a tropa canoeira.
- Toda hora entra gentes novas nessa canoa, que nem o senhor. Morenas bonitas, dotores, mascates, vaqueiros do sertão, homens do mar, estrangeiros da língua enrolada. Como esse trecho dura três dias e três noites , dá pra apertar amizade. Escuto muitas histórias do mundo, fico sabendo de quase tudo. Menos os estrangeiros, que até hoje num consegui inrolar minha língua pra prosear com eles.
Assombra adiante o encachoeirado do Clinelo, faminto bebedor de cargas. Porém a mais respeitada é a cachoeira de Sant’Ana, quatro léguas por riba do Salto. Ali a carga é baldeada por terra, para ser reencanoada no mijo da Santa. Mesmo pras canoa sem cangalhas, lá é um cemitério com lápides naturais de pedras, afiadas, morcegas, premonitórias...
- Mas cê nunca pensou em casar, ter esposa, filhos, casa, família?
Com quantos paus se faz uma canoa? As canoas são esculpidas em um só tronco de Ipê erado, para suportarem o açoite da torrente e as porradas pétreas das rochas no lombo. E canoa ferida sangra para dentro...Meu pai num casou? Teve muié, fio, famia, amigo. Se ele nu percisó de casa, eu tomém num perciso. Agora eu num tô dando sorte de ajeitar uma morena que aceite viver aqui na canoa, que nem minha mãe...
A tripulação é três: embarca-se de um piloto e dupla proeira, pastores das obesas cargas de bem umas cem arrobas. Rio abaixo, a canoa é tangida no meio do curso e desce à voga a favor do fluxo.
- E ocê não se sente sozinho, assim?
Rio acima, vai bebendo pelas beiradas, marginando a contra-corrente à vara, menos nos encachoeirados. Ali desenrodilha-se a regeira da proa, um dos proeiros se deságua para a areia, garantindo a subida, com a cumplicidade suada dos dois camaradas e pelo empurrão da vela estufada, quando o vento é amigo.
- Cumpanhado ou suzin, são ou doente, o mai forte é o sujeito se achar sempre valente...
- Mas às vezes num dá tristeza de viver?
Água morro abaixo, toda uiara ajuda: No meio do rio os proeiros tocam os remos presos à borda, as vogas orquestram, os homens cantam, sob o arranjo do canoar, cantilenas sertaneiras (há pouco tempo, perdidas pra sempre...): tristonhas como a natureza virgemorta e sinceras como a Verdadeira.
- Nunca deixei chegar tristeza. Nos tempos de calmaria, fico escolhendo a qual batalha me embrenhar. Inventando desafio... Num se deixa é o sangue esfriar, senão cuaia... Num quero morrer, mas quero morrer assim, luitano...
De remadas em descida, na sela de madeira no pelo d’água, encastela do alto uma casinha cercada de bandeiras, com sua horta na rampa da barranca. Da canoa acena-se o comprimento que se apresenta e se despede num só grito, e lá de riba, outros confirmam a escuta e a presença de vidas.
- Mas e as alegrias da terra, das cidades? - O sol deslizava para o meio do céu.
Enquanto o galope d’água desliza num passo ralo, o caldeirão da feijoada nativa funga fervendo e cheirando na popa, onde se graveteou um fogo sobre um lastro de areia. Os canoeiros estão prenhes de um vazio devorador. É a força para a doma das correntezas: Quando zarparam já esquentaram o jejum com uma espetada de carne-de-sol.
- Aqui tem as alegrias das águas, da canoa. Tem violeiros que chegam, repentistas, cantorias...
O céu clareia dez horas, refletidas nas sombras dos ombros. A canoa abica à margem arenosa; num remo hasteado na areia coleira-se a regeira da proa; a tripulação treispulam para a praia com toda a cozinha fluvial e cada deles mais bem disposto, vão engamelando o gostoso à farta da gula. O feijão cozinhara gordas toras de toucinho, agora esmagadas pelo salivante canoeiro com o garfo de pau, nadando na gordura escaldante, desembocada na gamela sobre o arroz de canoeiro e a carne-de-sol assada no espeto de pau junto ao peixe crocante fisgado à noite, embochecham as bocas sedentas de fome e inundam a praia de aromas picantes.
- Mas e a falta de mulher? Um homem sem mulher não é homem... - O sol está no meio do céu.
Depois de areado o sujado das panelas, reencanoar e reviajar à corrente. Se na barra das vistas vem despontando outra canoa é bem vinda e bem conhecida. As saudações em gritos estentóricos são bravas putarias recebidas como boa chalaça: troca de forças e vontade de mais para todas...
- Então sou um minino antigo. Mas na barra do Arassuahy com o Caiauzin tem uma casa dessas moças que cobram pra dormir. E as veis elas desce pra dormir na prainha... - O sol começou a descair pro oeste.
O café é coado no filtro de toda hora: esperta mas não sustenta. Na luta contra o corpo, mais coragem vem do chouriço: o caldeirão pormeiado de gordura porcina pururucando, derrete um punhado de rapadura ralada, mais farinha, remando a combinada até o ponto de angu. Aí, é até rapar o fundo. E a canoa vai contínua a arfar nos baixios ao ranger das vogas: arranjo harmonioso para as saudosas melodias, vencendo terras na poeira das águas... O sol começa a morrer e a noite a nascer na primeira estrela.
- Mas e a igreja, a religião, a sabedoria pra viver? - O sol começa a se pôr pro trás da mata ribeira.
A janta é no apear de alguma ilha ou areal. Acende-se a barraca com a vela da canoa e remos pilastreados na areia.
- Uai, eu num sabia que a gente percisava delas pra viver...
Troca-se suores com o rio, alguma abóbora furtada numa vazante joga dados na panela. Proseiam-se, estoreiam-se, janta-se e se deitam enquanto a lua bóia no céu, aboiando um rebanho enuvenlado. A viola escapa então do caixote e três vozes uníssonas escoam as cantigas de beirar-mar:
♪...ah beira-mar, adeus dona,
adeus riacho de areia...
adeus a deusa dona deusa
eu já vou mimbora
eu morava no fundo d’água
não sei cond’eu voltarei
eu sou canoeiro! ♪
- Tá certo, cê tá com a razão e me convenceu. Essa vida é muito boa... Mas tenho uma notícia muito ruim pra te dar, mas tenho que te dar, não por maldade nem por revanche, mas pra que ocê se prepare pro futuro... Tão construindo uma ferrovia ligando Arassuhay a Ponta de Areia na Bahia. É a Bahiminas. O transporte de gentes e coisas vai ser todo de maria-fumaça.
O rio vai uivando, roncando, baixo, baixinho...
- Agardeço a novidade, é de serventia. Mai em quanto tempo ela fica pronta?
Novo dia, mesma disciplina e cana não pinga na canoa. Rio acima, a canoa só vem à riba no muque dos remadores.
- Fica toda pronta em dez anos...
No peito do canoeiro seca tatuado um grande calo onde é apoiado o pé da vara para a calcada, enquanto o sol mais vivo das gerais chicoteia os costados dos homens bravos.
- Ah, que boa notícia o sinhô me deu agora! Eu já tô co quarenta, ninhum canoeiro chega nos cinquenta, não! Muito agardecido, muito agardecido mesmo, seo dotô!!! - Abre uma risada ao sol me estendendo a mão pesada.
O canoeiro do arassuahy é sempre alegre, e sempre morre muito jovem, levado pelo coração. Existiu apenas num intervalo de um rio, apenas no intervalo de um tempo, correnteza abaixo, correnteza acima, acorrentado eternamente...
Tive notícia de que aquela foi a última grande canoa do Arassuhay, que sobreviveu àqueles canoeiros, e dela só resta essa foto tirada na enchente da cidade de Arassuhay em 1941.

Nenhum comentário:

Postar um comentário