terça-feira, 1 de novembro de 2011

A ÚLTIMA CANOA DO ARASSUAHY


O vivido existira na fronteira do cerrado encaracolado com a caatinga, no fecho do derradeiro quartel do século dezenove... No relato que lembrarei aqui, tentarei ofertar, com o pouco passado que me sobrou, os gestos da fala e o espírito de ver a vida daqueles homens daquele lugar, naqueles tempos...
O rio Arassuahy nunca dera pé, vazão à navegação, com os seus funis, chupões e uma rede de rodamoinhos imersos. Mas, na correnteza empedrada e encachoeirada, teimava-se canoando...
Eram os vindos de 1900, e eu me achei num daqueles canoões de cinquenta braças de comprimento. Eu descia de Belmonte na Bahia contra a corrente, rio acima, com a tenência de magistrar na recém emancipada cidade de Arassuahy. A estrada era o rio. O canoão trazia de Arassuahy os produtos do sertão, carne de sol, latadas de carne de porco conservadas em banha, feijão, arroz de sequeiro, tonéis de cachaça, couro cru, pequi, rapadura e outros sortimentos. E do porto de Belmonte, encanoaram naquela madrugadinha, além deste humilde professor, sacas de sal, fazenda de panos, canecas e panelas de alumínio, garrafas de barbitúricos, mercadorias de mascates e outras indústrias.
A viagem custava longa, e logo de entrada, puxei amizade e principiei um prosear com um dos canoeiros, quando o sol ainda paria a manhã. Eu queria mais orelhar que bater a língua e fui escutando:
- Nosso pai já era remador, foi dele que herdei essa canoa, e nessa lida se come e se dorme na canoa. De sorte que ele conheceu minha mãe fazendo uma travessia... Se olharam, se enamoraram e se amancebaram. Meu pai ainda não detinha patrimônio e a valença foi habitarem a canoa numa barraca armada perto da popa, onde meu pai guiava. O resto da tripulação dormia mais adiante. Entonce minha mãe virou tripulação e ficou de cozinheira e lavadeira, mas nunca se negou a pegar no cabo do remo na urgência da precisão. Pois os dois me sinceraram que eu fui embarrigado e parido naquela barraca. E dispois, diversas pessoas sensatas testemunharam a informação. Do que eu mesmo me alembro, era d´eu, desde que me tenho por gente, brincando, pescando dentro da canoa ou tomando banho no rio. Essa vida, esse rio, não entendo onde nasce, não sei das suas cabeceiras, nem nunca vi o seu final. Dizem que é no mar... Esse tempo, esse lugar, vim aparecer aqui. Mal, mal, mirei os olhos dos meus pais e fecharam. Sei que fui menino e aprendi a alegria da luta na labuta...
Havia leitos onde a braça do rio se abria em mãos e dedos, e veias que sangravam espumantes entre cardumes de barbatanas de rochas; à flor d’água ou afogadas. O sol começava a sangrar nos horizontes.
- Não conhece o mar? - O céu azulava no horizonte d´água do rio.
Noutras corredeiras ele se espraiava e se acelerava sobre calhaus de cristal. Estreitafundava-se, aprumando, encurvando, serepentinava entre molduras arenosas numa margem, lajedas noutra banda, acolá sobrancelhado por vegetação ribeira.
- Não, porque além da canoa de meu pai, herdei esse trecho de rio que começa antes da foz e termina num encachoeirado, onde se faz a baldeação das gentes e das mercadorias pra outra canoa. Remo da hora que acordo até dormir, preparamo e cumemo o feijão com toucinho e miudezas de porco, tomém aqui dentro.
Garças a esfumaçar em nuvens brancas à bicada da proa, arengueiros ao vento em silvos, depenando a sonsidão apavorável das marrecas.
- Mas de vez em quando você desce né?
O Socó em galope rasante sobre a tona, à frente da linha da canoa, querendo-a carruagem aquática, fingido-se desafiante, perseguido, guia voluntário, ou o que sei lá.
- Num dá, quando tô na baldeação do encachoeirado é a conta de trocar as mercadoria com a outra canoa. Passamo as nossa pra ela e as dela pra nossa e volto rio abaixo. E quando chego no Porto das Canoas, é a conta de descarregar a mercadoria e carregar com outra.
As Verdadeiras gemelancolizam a paisagem pousada nas árvores praieiras.
- Mas como cê faz pra visitar a cidade, conhecer as coisas da vida?
O bote em curva, para o fundo, do medroso ( já que medonho) jacaré. E ilhas de seribas em perpétuo banho no ralo do rio.
- Pra te ser verdadeiro, eu não nem nunca não, mas uma vez pisei em terra pra caminhar e meu estambo imbruiou tanto que gurmitei até as tripas. E dispois disso, nem vê!
Há passagens camaleônicas onde o canoeiro preto fica pardo; o pardo, branco e o branco entomateia.
- Mas cumé que cê vive assim criatura?
Mesmo para o piloto que já esqueceu a cor da terra: Junto à barra do Pontal, onde o arassuahy se jequitinhonha, um muro natural ponteia o rio, derrobando uma queda de mais de metro d’água. Um língua na banguela das águas, bem no meio é a única passagem para o serpentismo das canoas: É o Capoeirão, malafamado pelas rasteiras fatais.
- Vivi vivendo, vendo minhas mãos crescendo, meus braços engrossando, cabelos branqueando, tudo sem minha vontade, sem poder fazer nada, que nem num canoão sem remos... Mas me criei na força, sem assentar pra pensar, nem ter medo, entristecer, nem com doença... nunca dei prosa. Só na galopada, só no sanguente! Acho bão, o agir no dia, com a cabaça da cabeça no sol quente, com o trote do corpo suando. E de noite, durmo fundo de cansado... Enfrentando tudo que me invoca, com brabeza, de peito cheio, sem dá pra trás... A coragem vigora com o hábito e a covardia, tomém! Mas óia: Vista aberta e fala fechada em toda piscada...
Mais águas, avista-se o Passo Do Frade, rocha metida a busto, que não passa o pé em, nem batiza ninguém.
- Mas cê não tem curiosidade de conhece gentes novas, aventuras?
Depois, o Cubangos, estreito arquitetado pela natureza, no jeito do homem redear uma ponte. Inriba de São Tumé abisma um encachoeirado de mais de uma légua de ribanceira. Incontáveis canais e rochas batizados de Labirinto: Se o piloto não alinhar o caminho das águas, busca a procura, acha o das pedras, perde o prumo, o remo, o rumo, a carga, a fama, as perdas e até a vida. Durante quinze minutos de tempo (horas pelo medo) o piloto inunda a vista só da água, os proeiros de varas vão abrindo picadas para a tropa canoeira.
- Toda hora entra gentes novas nessa canoa, que nem o senhor. Morenas bonitas, dotores, mascates, vaqueiros do sertão, homens do mar, estrangeiros da língua enrolada. Como esse trecho dura três dias e três noites , dá pra apertar amizade. Escuto muitas histórias do mundo, fico sabendo de quase tudo. Menos os estrangeiros, que até hoje num consegui inrolar minha língua pra prosear com eles.
Assombra adiante o encachoeirado do Clinelo, faminto bebedor de cargas. Porém a mais respeitada é a cachoeira de Sant’Ana, quatro léguas por riba do Salto. Ali a carga é baldeada por terra, para ser reencanoada no mijo da Santa. Mesmo pras canoa sem cangalhas, lá é um cemitério com lápides naturais de pedras, afiadas, morcegas, premonitórias...
- Mas cê nunca pensou em casar, ter esposa, filhos, casa, família?
Com quantos paus se faz uma canoa? As canoas são esculpidas em um só tronco de Ipê erado, para suportarem o açoite da torrente e as porradas pétreas das rochas no lombo. E canoa ferida sangra para dentro...Meu pai num casou? Teve muié, fio, famia, amigo. Se ele nu percisó de casa, eu tomém num perciso. Agora eu num tô dando sorte de ajeitar uma morena que aceite viver aqui na canoa, que nem minha mãe...
A tripulação é três: embarca-se de um piloto e dupla proeira, pastores das obesas cargas de bem umas cem arrobas. Rio abaixo, a canoa é tangida no meio do curso e desce à voga a favor do fluxo.
- E ocê não se sente sozinho, assim?
Rio acima, vai bebendo pelas beiradas, marginando a contra-corrente à vara, menos nos encachoeirados. Ali desenrodilha-se a regeira da proa, um dos proeiros se deságua para a areia, garantindo a subida, com a cumplicidade suada dos dois camaradas e pelo empurrão da vela estufada, quando o vento é amigo.
- Cumpanhado ou suzin, são ou doente, o mai forte é o sujeito se achar sempre valente...
- Mas às vezes num dá tristeza de viver?
Água morro abaixo, toda uiara ajuda: No meio do rio os proeiros tocam os remos presos à borda, as vogas orquestram, os homens cantam, sob o arranjo do canoar, cantilenas sertaneiras (há pouco tempo, perdidas pra sempre...): tristonhas como a natureza virgemorta e sinceras como a Verdadeira.
- Nunca deixei chegar tristeza. Nos tempos de calmaria, fico escolhendo a qual batalha me embrenhar. Inventando desafio... Num se deixa é o sangue esfriar, senão cuaia... Num quero morrer, mas quero morrer assim, luitano...
De remadas em descida, na sela de madeira no pelo d’água, encastela do alto uma casinha cercada de bandeiras, com sua horta na rampa da barranca. Da canoa acena-se o comprimento que se apresenta e se despede num só grito, e lá de riba, outros confirmam a escuta e a presença de vidas.
- Mas e as alegrias da terra, das cidades? - O sol deslizava para o meio do céu.
Enquanto o galope d’água desliza num passo ralo, o caldeirão da feijoada nativa funga fervendo e cheirando na popa, onde se graveteou um fogo sobre um lastro de areia. Os canoeiros estão prenhes de um vazio devorador. É a força para a doma das correntezas: Quando zarparam já esquentaram o jejum com uma espetada de carne-de-sol.
- Aqui tem as alegrias das águas, da canoa. Tem violeiros que chegam, repentistas, cantorias...
O céu clareia dez horas, refletidas nas sombras dos ombros. A canoa abica à margem arenosa; num remo hasteado na areia coleira-se a regeira da proa; a tripulação treispulam para a praia com toda a cozinha fluvial e cada deles mais bem disposto, vão engamelando o gostoso à farta da gula. O feijão cozinhara gordas toras de toucinho, agora esmagadas pelo salivante canoeiro com o garfo de pau, nadando na gordura escaldante, desembocada na gamela sobre o arroz de canoeiro e a carne-de-sol assada no espeto de pau junto ao peixe crocante fisgado à noite, embochecham as bocas sedentas de fome e inundam a praia de aromas picantes.
- Mas e a falta de mulher? Um homem sem mulher não é homem... - O sol está no meio do céu.
Depois de areado o sujado das panelas, reencanoar e reviajar à corrente. Se na barra das vistas vem despontando outra canoa é bem vinda e bem conhecida. As saudações em gritos estentóricos são bravas putarias recebidas como boa chalaça: troca de forças e vontade de mais para todas...
- Então sou um minino antigo. Mas na barra do Arassuahy com o Caiauzin tem uma casa dessas moças que cobram pra dormir. E as veis elas desce pra dormir na prainha... - O sol começou a descair pro oeste.
O café é coado no filtro de toda hora: esperta mas não sustenta. Na luta contra o corpo, mais coragem vem do chouriço: o caldeirão pormeiado de gordura porcina pururucando, derrete um punhado de rapadura ralada, mais farinha, remando a combinada até o ponto de angu. Aí, é até rapar o fundo. E a canoa vai contínua a arfar nos baixios ao ranger das vogas: arranjo harmonioso para as saudosas melodias, vencendo terras na poeira das águas... O sol começa a morrer e a noite a nascer na primeira estrela.
- Mas e a igreja, a religião, a sabedoria pra viver? - O sol começa a se pôr pro trás da mata ribeira.
A janta é no apear de alguma ilha ou areal. Acende-se a barraca com a vela da canoa e remos pilastreados na areia.
- Uai, eu num sabia que a gente percisava delas pra viver...
Troca-se suores com o rio, alguma abóbora furtada numa vazante joga dados na panela. Proseiam-se, estoreiam-se, janta-se e se deitam enquanto a lua bóia no céu, aboiando um rebanho enuvenlado. A viola escapa então do caixote e três vozes uníssonas escoam as cantigas de beirar-mar:
♪...ah beira-mar, adeus dona,
adeus riacho de areia...
adeus a deusa dona deusa
eu já vou mimbora
eu morava no fundo d’água
não sei cond’eu voltarei
eu sou canoeiro! ♪
- Tá certo, cê tá com a razão e me convenceu. Essa vida é muito boa... Mas tenho uma notícia muito ruim pra te dar, mas tenho que te dar, não por maldade nem por revanche, mas pra que ocê se prepare pro futuro... Tão construindo uma ferrovia ligando Arassuhay a Ponta de Areia na Bahia. É a Bahiminas. O transporte de gentes e coisas vai ser todo de maria-fumaça.
O rio vai uivando, roncando, baixo, baixinho...
- Agardeço a novidade, é de serventia. Mai em quanto tempo ela fica pronta?
Novo dia, mesma disciplina e cana não pinga na canoa. Rio acima, a canoa só vem à riba no muque dos remadores.
- Fica toda pronta em dez anos...
No peito do canoeiro seca tatuado um grande calo onde é apoiado o pé da vara para a calcada, enquanto o sol mais vivo das gerais chicoteia os costados dos homens bravos.
- Ah, que boa notícia o sinhô me deu agora! Eu já tô co quarenta, ninhum canoeiro chega nos cinquenta, não! Muito agardecido, muito agardecido mesmo, seo dotô!!! - Abre uma risada ao sol me estendendo a mão pesada.
O canoeiro do arassuahy é sempre alegre, e sempre morre muito jovem, levado pelo coração. Existiu apenas num intervalo de um rio, apenas no intervalo de um tempo, correnteza abaixo, correnteza acima, acorrentado eternamente...
Tive notícia de que aquela foi a última grande canoa do Arassuhay, que sobreviveu àqueles canoeiros, e dela só resta essa foto tirada na enchente da cidade de Arassuhay em 1941.

O CEGO DIANTE DO ESPELHO ou CONVERSA INÉDITA COM JORGE BORGES




Chego aos altos umbrais do Arcângelo e já ouço, como se entrasse em uma concha, o marulhar de conversas sobrepostas, músicas simultâneas e do tilintar vítreo dos copos. O lugar é um amplo saguão de edifício, cujo espaço central é ladeado de bares, lanchonetes, sebos, e lojinhas de discos. É a nave da catedral da baixa boêmia. Sinto o aroma de porções fumegantes de carnes e batatas fritas trazidas pelos garçons, que vão se misturando a cheiros de cigarro e perfumes baratos misturados. Vejo um horizonte de cabeças, flashes de sorrisos e gargalhadas rasgarem em meio à multidão sentada. Palavras ensopadas de cerveja saindo ansiosamente das bocas, nesgas de coxas nuas cruzadas sob as mesinhas de metal, saias curtas, jeans apertados, lábios pintados de vermelho, decotes negros emoldurando seios. Atravesso ondas de pessoas se levantando, se sentando, chegando, indo embora, e me posiciono numa mesinha em frente ao sebo do Isidoro. Francisco Isidoro.


O sebo é de uma só porta, estreito e longilíneo como um corredor, cujas paredes são formadas de livros do chão até o teto. E tão comprido que vai escurecendo à deficiência das lâmpadas, até ficar totalmente escuro como túnel, cujo final não se enxerga. E é lá no fundo que se esconde o velho Isidoro. Pra ele não faz diferença, já que é absolutamente cego. Grito o seu nome (“Seo Francisco!”) e em resposta ouço o eco de seus passos engasgado com os de sua bengala. Vem vagarosamente em linha reta, mas com a segurança de quem vive ali há setenta, oitenta anos. Um garçom do bar ao lado vem me atender.


- Me vê uma gela... Não, por enquanto não! – Lembro que estou sem grana. – Aqui Seo Chico!


Ele vem até a mim no seu velho terno e gravata, cheirando a livros velhos, acerta o pé da mesinha com sua bengala, puxa uma cadeira e se senta, abrindo um sorriso na direção de ninguém. Reparo nos seus “olhos sem olhar” e eles sempre me parecem mirar um horizonte muito distante, imaginário mas real.


- Como vai, seo moço? – Pergunta ele, descobrindo a direção de meu rosto.


- Vim te fazer uma visitinha. – Arrasto minha cadeira mais pra perto.


- Não vai beber nada hoje? – Avança a cabeça pro lado da minha, e seus cabelos finos e brancos penteados pra trás, lhe caem na testa.


- Como é que senhor sabe? - Ao fundo, em um bar mais recolhido ainda que o nosso, estão dois casais em mesas opostas. As duas paredes laterais e a parede do fundo do barzinho têm espelhos que vão do teto ao chão.


- Não estou sentindo o cheirinho bom da cerveja... – Tenta ajeitar os cabelos com a mão.


- O senhor enxerga mais que nós, Isidoro. - Numa das mesas está uma morena num vestido claro e justo.


- Tá com sede, mas sem numerário? Eu lhe pago um trago. – E apoia as duas mãos sobre o cabo da bengala.


- Tô dizendo que cê enxerga fundo... Vou ficar te devendo essa. - ...De saia curta, cintura fina, ombros nus.


- Não me deve nada! – Sorri generosamente, erguendo as sobrancelhas, com os olhinhos fundos e vesgos.


- Então obrigado! – ...Anéis e colares brancos, contrastando com a pele morena. Assovio e ergo o braço pra o garçom me avistar.


- Sem briga! – E um de seus olhos fica mais fechado que o outro.


- O senhor fica muito escondido lá no fundo do sebo. É muito escuro. Assim o freguês chega e acha que não tem ninguém... – ...Cabelos negros ondulados e brilhantes, caindo um pouco abaixo dos ombros... Peço a cerveja.


- Não há fregueses há essa hora. E a escuridão não faz diferença pra mim. Além do mais não gosto de sair da minha gruta. - Fecha os dois olhos comprimindo-os como se ardessem.


- Fora da caverna, espreita a morte. – ...Olhos negros de odalisca, amendoados e com cílios postiços, contornados a lápis.


- Não temo a morte, aguardo-a com esperanças e impaciente. – Suas narinas se dilatam num suspiro.


- Mas o senhor sozinho no meio desses livros velhos... Se pega fogo, como vai fazer? – Sobre os olhos, sobrancelhas retas e realçadas, que vão se afinando rum às têmporas. Sobre as pálpebras, uma sombra azulada. A cerveja chega e o garçom a serve num copo americano.


- Houve um imperador chinês que mandou queimar todos os livros... – Vira-se pra mim, erguendo uma sobrancelha e abaixando a outra.


- Queimar a história? – ...Lábios em forma de folha, suculentos, úmidos, pintados com batom chocolate, sendo o lábio superior levemente mais fino que o inferior... Bebo um primeiro e longo gole.


- O mesmo que mandou construir a muralha da China. – E estica o pescoço enrugado como um jaboti saindo do casco.


- E cercar o presente, o tempo... – Vê-se ainda o lóbulo das orelhas da morena, donde pendem longos brincos prateados.


- Onde a morte, a degeneração do ser não podem entrar... – Olha pra cima sem olhar.


- Como na sua gruta? – Ao lado da morena está um jovem de cabelos pretos e lisos, penteados pra trás, com um leve topete, braços fortes, camiseta branca estampada com o rosto de Elvis, jeans azul claro e botas pretas.


- Eu já sou um degenerado! – E ri projetando o queixo.


- Sabe que há quem duvide que és cego, hem?! O senhor sabe exatamente onde se encontra cada um desses milhares de livros nessas dezenas de prateleiras. – A morena cruza as pernas e não posso deixar de reparar naquelas curvas, que terminam em sapatos de salto alto, prata, que calçam dois mimosos pés de dedinhos curtos... Bebo o segundo gole, esvaziando o primeiro copo.


- Não precisa enxergar pra isso, basta boa memória. – Muda a posição da bengala e das mãos.


- Mas ainda assim deve ser um labirinto pra o senhor... - Na outra mesa está uma loira...


- Eu me dou bem com labirintos... – Sorri levemente sem mostrar os dentes.


- E num labirinto a visão não ajuda muito... – Loira de cabelos cheios, curtos, encarolados e dourados, deixando a nuca à mostra... Encho outro copo espumante.


- A visão do olho, não. Mas pra um cego, sua visão está em toda parte, apesar do foco está em lugar nenhum. – E fica com os lábios entreabertos depois da fala.


- E por isso, o senhor olha mais pra dentro e enxerga mais profundamente. - Veste um vestido preto, que se inicia tarde, depois do começo do seios, que parecem quererem se libertar... Bebo o terceiro gole.


- É possível. Mas mesmo que eu enxergue o que outros não enxerguem, atrás disso há sempre outra coisa que eu não irei perceber... – E faz um ar professoral.


- Como assim? - E o vestido fatalmente seria vencido pelos seios, não fossem duas alças finas e pretas que se cruzam no colo níveo, segurando-os... Bebo o quarto gole.


- Mesmo que eu consiga enxergar e observar minha mente... Minha alma, meus pensamentos, minha consciência enfim, será uma outra consciência minha ou um outro nível de consciência que estará observando, e atrás ou acima dela há uma outra consciência ou um nível mais alto e assim sucessivamente. – Quando fala deixa mostrar apenas os dentes inferiores.


- A consciência da consciência da consciência... - Os lábios carnudos têm uma textura de pétala, realçada por um carmim vibrante... Bebo o quinto gole, esvaziando o segundo copo.


- Infinitamente... Meu pensamento é uma voz interior que ouço, percebo e observo fluir, mas esse sujeito que percebe é também uma outra voz, e a consciência dessa segunda voz interior é na verdade uma terceira voz, e assim por diante. – Abaixa o queixo quase encostando-o nas mãos sobre a bengala.


- Como aquelas bonequinhas russas que se vão abrindo e sempre tem uma dentro da outra. - ...Olhos verdes profundos, contornados por lápis esverdeados, intensificando mais ainda a cor.


- Como a matéria, o átomo, ou dois pontos no espaço, que por mais que sejam divididos, sempre haverá um espaço entre eles, que também é infinitamente divisível. – Ergue o queixo pra cima.


- Ou como o morceguinho da canção... – E começo a cantarolar e a batucar na mesinha de metal:


“Mas tem coisa pequena nesse mundo


Que desafia a ciência de verdade


Tá aqui uma que causa confusão


A ciência não dá explicação


Se morcego é ave ou animal


E como é que é feita a geração


Mata um, tem outro dentro dele


Dentro dele tem outro menorzinho


Procurando com jeito ainda encontra


Dentro do outro um outro morceguinho”


- É... É uma intuição que é universal na humanidade... – Estica um dos braços sobre a mesa.


- Isso é uma canção nordestina, se não me engano é do João do Vale. - ...Sobrancelhas arqueadas em vértice e finas lhe dão um ar de irresistível arrogância... Encho o terceiro copo.


- Tua memória é ótima. – Batuca os dedos sobre a mesinha.


- Só a musical. Já a do senhor é enciclopédica! - ...Brincos de ouro e pérola sobre a conchinha branca das orelhas.


- Acho que não, sou muito limitado. Não sou nenhum memorioso. A questão é que releio muito. Releio mais do que leio... Aliás relia! – E sorri – Depois dos 50 anos de idade, quando fiquei cego, leêm pra mim, não é? Mas gosto de ser esquecido. Assim posso sentir o mesmo prazer, ou outros prazeres em reler um livro que já li há oitenta anos atrás. E oitenta anos de esquecimento equivalem a uma grande novidade! Os escritores contemporâneos já são muito parecidos conosco, quem está atrás de novidade, vai encontrá-las com mais facilidade nos antigos... – Sua bengala cai e ele se abaixa pra pegá-la.


- É, a memória humana é muito limitada e nossa percepção da realidade, muito mais... Não conseguimos apreender completamente nem um instante... - ...Pulseiras e anéis de ouro, em mãos pousadas sobre a saia, se destacam sobre o veludo negro do vestido.


- Também, se conseguíssemos... O conhecimento perfeito de um só instante seria suficiente pra que uma inteligência infinita soubesse a história do universo, passada e vindoura, já que o instante presente é consequência do anterior e causa do posterior... – Pára de tamborilar os dedos.


- Então tudo seria inevitável e já pré-determinado, sendo possível deduzir o futuro... Mas e a interferência dos sujeitos, o pensamento, a ação, o livre arbítrio? - ...Pernas lácteas, que nascem em coxas grossas e se alongam até um scarpin de salto fino, preto fosco, que não escondem dorso dos pezinhos róseos... Bebo um longo e saboroso gole.


- Não creio em livre arbítrio. Essa noite, em que aqui estamos, não é uma noite. É uma série de séculos que a precederam. – E olha pra um ponto imaginário no chão, como se pudesse enxergar.


- Bem, mas agora por exemplo, eu tenho várias alternativas de pensamentos e ações e posso escolher entre elas. Decidir... - Ao lado da loira está um jovem moreno de cabelos lisos partidos ao meio, que se derramam pelos lados rente à linha do forte maxilar.


- Mas as alternativas não são infinitas. E sua escolha, decisão, já foi influenciada, pré-determinada pelo instante anterior, o pensamento anterior, as ações anteriores, suas, de seus pais, de seus avós até chegar no seu primeiro ancestral. – Leva a mão ao bolso do paletó como se fosse apanhar os óculos. Talvez a memória de um gesto antigo.


- É, mas pra validar isso, temos de dar voto de confiança absoluto em nossa memória. E se ela for falsa? – O garoto tem lábios pequenos e cavanhaque escanhoado. Veste uma camisa social vermelha com um colete preto por cima, que não escondem a forte caixa toráxica.


- É possível que o planeta tenha sido criado há poucos minutos, provido de uma humanidade que “recorda” um passado ilusório. Essa ideia é antiga... – Fala olhando pra cima, franzindo os lábios.


- E atual. Já pensei em escrever uma ficção onde seres humanos sofrem implantes de chips com falsas memórias em seus cérebros... Mas alguém já deve ter escrito isso. – ...O jovem veste calças de couro preto e sapatos de flamenco.


- Não há problema. Você pode melhorar a ideia, cunhar um símbolo humano. Quem sabe crie um personagem que se torne um mito pra o futuro. Como Dom Quixote... – Fecha os dois punhos sobre a bengala.


- Como Deus, pra mim o maior personagem que a mente humana já criou. E paradoxalmente, o mais absurdo e o mais acreditado pela humanidade, que ergueu templos pra cultuar esse conjunto de imaginações judaicas...- Os dois casais, cada qual a seu lado, conversam sorridentes e simultâneos palavras que não chegam a mim.


- ...Interpretadas sob a visão platônica e aristotélica.. Há na história das religiões, da filosofia, doutrinas provavelmente falsas, que exercem um obscuro encanto sobre a imaginação dos homens. A doutrina do trânsito da alma permeia tanto o pensamento ocidental, platônico e pitagórico, quanto o pensamento oriental da Índia, China, de tribos indígenas brasileiras... É universal... – Abre as duas mãos como polvos submersos.


- Talvez porque Deus, esse personagem mitológico, seja criado à imagem e semelhança do homem, mas adicionado de seus sonhos. Um retrato do homem sonhado, um anti-retrato de Dorian Gray... - ...Chega uma garrafa de vinho na mesa da loira e do cigano.


- Um personagem que é eterno porque permite uma infinita e plástica ambiguidade. Não argumenta, e portanto, é infalível, não declara seu nome, e portanto é inalcançável, não racionaliza, como todo bom personagem que se incorpora à memória geral da espécie. – Estica os dedos das mãos como se estivessem dormentes.


- Por isso acredito em Deus, porque é o melhor personagem já criado. – Rimos juntos. - E nos ajuda a suportar a realidade... - A morena e Elvis bebem cerveja.


- Se não, a compreendê-la, mas pelo menos, suportá-la com esperanças. – Deixa a bengala escorada num canto da mesa.


- Mas o fato é que tentamos compreender a vida, o universo, com um instrumento bem precário que é a linguagem... - Os casais estão sentados de modo que as mulheres ficam de frente e os rapazes de costas um pra o outro.


- A linguagem não é um fato científico, mas artístico; foi inventada por guerreiros e caçadores e é muito anterior à ciência. – Entrelaça os dedos sobre a mesa.


- Inventada por um chimpanzé que enlouqueceu e ficou metido a besta! – Rimos juntos – E o pior é que pensamos, tentamos compreender as coisas por meio dessa linguagem. - Os casais bebem e conversam. – A morena e a loira cruzam olhares pela primeira vez... Bebo outro gole.


- Sim. Toda linguagem é de natureza sucessiva, não é apropriada pra pensar o eterno, o intemporal. E essa linguagem por sua vez contém instrumentos mais precários ainda, que no entanto o ser humano adora, é atraído, e acha um dos melhores pra sentir a verdade, que são as metáforas, esse contato momentâneo de duas imagens... Bem, não acha um dos melhores, mas sente institivamente a verdade por meio delas. – Estala os dedos.


- A Bíblia utiliza-se muito delas e faz sucesso há mais de dois mil anos. E é o maior best-seller de ficção no Ocidente. – O cigano lê o cardápio, parece que vai fazer um pedido.


- O que não quer dizer que não seja verdadeira ou real, mais que nós. Se os personagens de uma ficção podem ser mais profundos, mais humanos que seus leitores, nós podemos ser fictícios. – Coça o pescoço.


- Jesus, não o histórico, é outro grande personagem, um deus suicida... - ... As duas continuam se reparando... Bebo outro gole, acho que do quarto copo.


- Um deus que fabrica o universo pra fabricar seu patíbulo. Que se matou com uma prodigiosa e voluntária exalação de sua alma. – Espalma uma das mãos sobre a gravata, ajeitando o colarinho.


- Sabia que iam matá-lo, tinha poderes pra evitar, mas preferiu esse suicídio pela mão dos homens pra salvá-los. Mas salvá-los de que? De conviver com um deus na Terra? Eis o grande mistério da fé... - A loira toma um gole da taça de vinho tinto, passando a ponta da língua entre os lábios, enquanto a morena cruzava as coxas. Bebo um gole nervoso, esvaziando meu copo.


- E também seríamos fragmentos de um deus, que no princípio dos tempos se destruiu, ávido de não-ser. – Põe um dos cotovelos na mesa e escora o queixo na palma da mão.


- Então, aquela matéria inicial, que se explodiu no Big-Bang pra formar o universo, era Deus se suicidando pra dar origem ao mundo, mas talvez, ávido de ser múltiplos seres... – Dessa vez é a loira que cruza as coxas, enquanto a morena passa a mão entre a negra cabeleira. Tento encher meu copo, mas a cerveja acabou. Peço outra. Não consigo mais olhar pro Francisco, fico paralelo, ombro a ombro com ele.


- Ou isso... É pouco o que nossa mente consegue supor, então não podemos desperdiçar nenhuma conjetura.


- E voltando à linguagem, então, talvez a intuição e outros tipos de percepção sejam instrumentos mais eficientes pra se compreender o mundo. – O cigano pede algum prato pro garçom. Minha segunda cerveja chega.


- Bem, as mulheres que pensam muito intuitivamente, parecem compreendê-lo melhor.


- Principalmente quando estão grávidas e são mães. Sentem a vida com mais clareza, com mais força. – A morena se levanta e vai ao toalete. Cinco segundos depois, a loira se levanta e também vai. Dou uma bicada na cerveja.


- E nós homens só temos a arte.


- E corremos o risco de confundir a realidade com a arte. – Elvis está pedindo algo pra o garçom.


- Pode ser uma confusão, mas também pode ser uma coincidência. Se todo homem se identifica com determinados personagens, não pode ser uma confusão. Deve ser uma coincidência. Ou bem mais do que uma coincidência...


- Um personagem pode ser todos os homens... – A morena volta sinuosa requebrando, com um sorriso sutil.


- E portanto um homem pode ser todos os homens...


- Com os mesmos desejos, medos, sonhos, pensamentos, doenças... – A loira volta rebolando com um sorrisinho cínico.


- E como pode ser que não haja pensamento ou doença que não sejam voluntários...


- Todos somos um, ou os mesmos. Ou no mínimo irmãos muito parecidos... Abandonados pelos pais neste grande orfanato azul que é a Terra. Isso deveria nos dar um sentimento de fraternidade... – A morena se senta, cruzando as coxas longas, e ajeitando a liga da meia-calça branca.


- Sim. Mas também podemos ser o sonho de um outro ser, tendo em vista o caráter, o funcionamento, o mecanismo idêntico dos personagens e das coisas. O mundo pode ser um sonho. Alguém agora pode estar nos sonhando.


- Assim como o que sonhamos pode ser real... É pena que não possamos provar isso. - A loira se senta lentamente.


- Há uma conjetura, que considero perfeita, à qual supõe que um homem sonha que foi ao paraíso, onde lhe dão uma rosa, e quando ele acorda tem a rosa na mão.


- Bom, adolescentes costumam sonhar fazendo sexo e quando acordam tem a flor molhada... – Rimos. - Então a polução noturna é uma prova física de que o sonho foi real. – Ela cruza as coxas grossas...


- Sim, o paraíso é real! – Rimos os dois.


- Mas se também formos o sonho de alguém, não temos poder de mudar a vida, nem o universo, nem nós mesmos, e portanto, não temos livre arbítrio. – ...E ajeita as ligas negras da meia-calça transparente.


- E nem podemos fazer nada contra o tempo. Não podemos abolir nosso passado, verbi gratia.


- Somos prisioneiros dessa engrenagem universal, desse sonho. – Na mesa da loira, chega numa panelinha de barro fumegante uma moqueca capixaba.


- Encarcerados nesses corpos, nesses simulacros, perpetuando a imagem dessa imagem...


- Como um espelho na frente do outro? – Na mesa da morena, o garçom traz uma porção de acarajés quentes, recheados de vatapá e camarão frito.


- Sim. Infinitamente... Uma prisão de espelhos, um labirinto sem centro, que é o presente.


- Mas não podemos dar uma espiadinha no outro lado, pelas fendas, pelas frestas desse sonho, pelos buracos da fechadura dessa prisão? – Olho embaixo das mesas da loira e da morena. Bebo mais um gole.


- Penso que sim. É isso que venho tentando fazer durante toda minha vida... Tentando espiar de curioso. A memória pode alterar ou fantasiar o passado, assim como a imaginação pode alterar o futuro. Mas estamos presos ao presente que é inalterável e muito grande. E por outro lado, podemos sentir o passado e pressentir o futuro, mas o presente escorre entre os dedos, e quando achamos que o estamos sentindo, é porque ele já é passado.


- Então se não existe presente, talvez não exista o tempo... E talvez a morte seja uma fresta um pouco maior... – Um menino passa vendendo “amendoim torrado, salgado e quentinho” em cones de papel dentro de uma lata aquecida por brasas acesas em sua base. Compro um cone com minhas últimas moedas.


- Assim como os nossos sonhos ou os pesadelos... E nas frestas, vemos o olho de Deus...


- Falando em sonhos, há tempos carrego comigo a intuição de que tudo o que qualquer homem sonha ou sonhou um dia se realizará. – Tanto o Cigano quanto Elvis se debruçam ferozmente sobre suas porções, enquanto a loira e morena apenas beliscam e mordiscam as guloseimas. Jogo um bago crocante na boca.


- Pode ser. Os homens que imaginaram a chegada do homem à lua, como Wells e Verne, achavam impossível esse feito. E menos de 30 anos da morte de Wells, isso foi conseguido... Por isso acho o maior feito da humanidade no século 20.


- Por confirmar que todo sonho se realizará... Pelo menos os grandes sonhos, os sonhos gerais, universais, comuns da humanidade... – As duas continuam se flertando, enquanto os rapazes só dão atenção pra seus pratos e suas bebidas. Mastigo mais uns grãos salgados de amendoim e dou mais um ou dois goles na cerveja.


- Não há homem que não seja hoje o que será...


- Ou que não sonhe hoje o que não será... Assim como tudo o que ele sonha ou acha que foi, ele é. – Os rapazes limpam seus pratos e a loira olha pro nosso lado. Trinco mais um amendoim entre os dentes.


- Mas essa conversa é infinita, seria boa pra a eternidade, e eu tenho muito pouco tempo por aqui. Mas espero que você continue discutindo, evoluindo esses pensamentos, assim pelo menos, parte do homem que fui continuará vivendo, assim como eu continuei meus predecessores...


- Claro que sim. O senhor daria um ótimo personagem pra a memória coletiva da humanidade. – O garçom recolhe os pratos das duas mesas.


- Bem, até o subconsciente deu um personagem famoso e uma nova mitologia, não é?


- Não sei se sobrou nada por inventar... – A morena também olha pro nosso lado.


- Isso não é essencial, mas ainda existe uma infinita imensidão de espaços e ideias que ignoro e me ignoram.


- Eu já imaginei que cada átomo encerrasse um universo, assim como o nosso estaria contido num átomo de outro universo... – A loira puxa um cigarro, o cigano acende e ela começa a fumar com volúpia.


- Acho que Pascal imaginou isso antes.


- Tá vendo? Tudo já foi pensado! – A morena também tira um cigarro.


- Por outro lado, há quem diga que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que uma floresta outonal... E que mesmo dentro de um vendedor de amendoim possam estar todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo.


- ...Todos os sonhos da carne e da alma... Talvez a culpa dessa frustação de parecer estar sempre repetindo o que outros pensaram ou sentiram seja da escrita. - Peço um cigarro ao garçom.


- É verdade que nem Buda, nem Sócrates, nem Jesus, jamais escreveram uma palavra. Talvez estivessem pensando nisso.


- E Kafka queria queimar seus escritos... Mas tiveram discípulos, amigos traidores que foram lá e escreveram, conservaram o que disseram. – O garçom traz o cigarro e acende.


- E a humanidade deve muito a esses santos traidores! – Sorri. – Mas não se preocupe, todo o homem que nasce é sempre o primeiro, nasce com a mesma sede e a mesma fome de Adão.


- Ainda vivemos o momento em que o homem ainda tem fome e se alimenta da Árvore da Sabedoria. Cada homem é o mesmo homem que viveu há quatro mil anos atrás. O que os difere é o habitat e o tempo. Ainda somos Adãos. Mas nunca vamos superar essa fase? – As duas trocam sorrisinhos e dou uma prazerosa tragada.


- Talvez porque sejamos o mesmo personagem de um único livro, conforme o tratado de Sefer Yetsirah.


- Escrito por Deus... – A loira faz anéis flutuantes de fumaça. Dou mais uma tragada e uma bicada na cerveja.


- Que se utilizou de vinte e duas letras fundamentais, desenhando-as, combinando-as, produzindo tudo o que é e tudo o que será.


- Então todo o universo seria um livro, no qual cada astro, cada natureza, cada ser, cada coisa, cada forma é uma palavra, um parágrafo, um capítulo... Daí uma das formas de decifrá-los seria a metáfora. – Elvis pergunta num tom que consigo ouvir, pra quem ela sorri tanto e tanto olha pra trás.


- Não é à toa que grandes líderes religiosos e filósofos falavam e escreviam por metáforas... Mas já disseram que o universo, o abismo das estrelas e tudo no mundo sejam apenas reflexos, um espelho das nossas almas.


- Logo se vemos misérias no mundo é porque estão dentro de nós... E também se vemos estrelas, belezas... – No instante que o Elvis olha, o Cigano que o tinha ouvido também olha pra trás.


- Podem estar dentro de vários, ou apenas de um homem, que pode ser um anônimo, um engraxate que anda por aí... – Os dois se encaram.


- Então caberia a cada homem eliminar as misérias que existem dentro de si pra melhorar o mundo... – O Cigano de cara amarrada pergunta ao Elvis alguma coisa que não ouço.


- Ao invés de ficar esperando que o Estado ou os políticos façam isso... – Sorri.


- Mas estamos perdidos dentro de nós mesmos. Todos os passos que dei na vida até hoje, todos os pensamentos que tive deixaram um rastro dentro de mim que formam um labirinto... – Elvis retruca perguntando alguma coisa.


- Ou uma figura geométrica... Mas nenhum homem conhece essa figura, ou seja, não sabe quem é.


- Por isso, ao invés do “conhece-te a ti mesmo”, seria melhor conhecer o teu vizinho... Ou, melhor, a tua vizinha mais bonita... – Rimos. As duas trocam olhares enigmáticos.


- Mas há homens reais que parecem não ter sido escritos por um deus, mas por outros homens... O Hitler, horrendo em exércitos públicos e espiões secretos, é um pleonasmo de Carlyle. Os alemães foram os mestres do horror no século dezenove... Lenin, uma transcrição de Karl Marx.


- Achava o Hitler, um subproduto da obra de Nietsche... Aquela ideia do super-homem que o Hitler tentou implementar...- Os dois rapazes se levantam e discutem.


- Enquanto o povo queria, sonhava com um herói. Aliás Carlyle escreveu em 1843 que a democracia é o desespero de não encontrar heróis que nos dirijam.


- O Herói, esse grande personagem que rivaliza com o Deus, afinal é um semideus. – O cigano joga uma taça de vinho na cara de Elvis.


- E o nazismo não triunfou porque não convencia literariamente. Os homens mataram e morreram por ele, mentiram por ele, mas ninguém no íntimo queria que ele triunfasse. O Hitler quis ser derrotado.


- Sempre achei isso, pois cometer o mesmo erro do Napoleão, invadindo a Rússia num dos piores invernos da história, sendo um fã do Napoleão... É uma das provas. Outra é que ele poderia ter se apossado das reservas de petróleo do Oriente Médio e ter vencido a guerra. Uma estratégia óbvia que não tentou. Cometeu uma série de atos, que sabia que o levariam à morte, à derrota. – Elvis revida, jogando um copo de cerveja na cara do outro.


- Mas talvez o Hitler fosse tão fã de Napoleão que queria vingá-lo dos russos. Uma vingança histórica.


- Talvez o mais importante pra ele fosse a vingança contra os russos, os judeus, o fato de ter sido humilhado, escarnecido na primeira guerra... – O cigano dá-lhe um soco e Elvis cai sobre a mesa.


- Como o é pra a maioria dos homens a vingança, essa vaidade... Mas se a literatura antecipou, premeditou esses homens, também já profetizou algo que ainda está no futuro: o esquecimento de sangues e nações, a solidariedade do gênero humano.


- E já eternizou momento... Penso que o homem tem de eterno é tudo o que imaginou, pois isso não possui matéria e, portanto, está imune ao tempo. Portanto, é indestrutível. – Elvis se levanta, quebra um casco de cerveja de baixo pra cima na borda mesa e parte pra cima do outro.


- O Nada budista também é indestrutível e eterno, pois está fora do tempo.


- Já eu acredito no Tudo. Creio, por exemplo, que a emoção uma vez sentida não se esvanece. Soma-se às outras e se transforma noutra coisa: O que somos. Então nunca perdemos nada ou ninguém, porque esse algo ou alguém são sensações nossas, que se amalgamam a outras e formam o que somos no presente. O menino que fui, o adulto que sou e o velho que serei estão aqui, agora. – O Cigano saca uma adaga escondida.


- Só se perde realmente o que não se teve... E você pode desfrutar ainda de suas felicidades de menino, pois a felicidade de hoje não é mais real que a felicidade pretérita.


- Nem menos atual. E não somos mais reais ou mais atuais que os mortos de cem anos atrás, pois estamos dentro da mesma infinitude do tempo. E também por que daqui a cem anos, todos os vivos de agora estarão tão mortos quanto os de cem anos atrás... Se não haverá diferença na eternidade, então não há agora, pois somos um átimo dela. – Os dois ficam se estudando, enquanto as pessoas vão abandonando as mesas.


- É, o tempo é uma delusão... A indiferença e a inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje bastam pra desintegrá-lo. E se o tempo é um processo mental, como podem compartilhá-lo milhares de homens, ou mesmo dois homens diferentes?


- Talvez não compartilhem. Por isso, morremos sozinhos, por isso divergimos tanto, não nos encontramos quase nunca, quase nunca nos sentimos, nos amamos de verdade... Vivemos presos no nosso universo particular que mal pode se comunicar com os outros. – Muita gente vai embora sem pagar, outros deixam dinheiro nas mesas e também vão embora.


- E aquele que mata um único homem, destrói um mundo... Por outro lado, a vida contêm elementos e processos muito simples, então é pobre demais pra não ser também imortal...


- Não sei se entendi, mas posso chegar à mesma conclusão por outro caminho. A ciência de hoje prova que os seres humanos são combinações de vários genes, combinações de personalidades, de seres ou de alma, como queiram. Essas combinações não são infinitas e tendem a se repetir. Então já existiu alguém idêntico a mim e voltará a existir no futuro. - Os dois contendores se acertam estocadas nos braços.


- A outra vida estaria dentro da própria vida...


- Sim, pois uma outra vida depois da morte seria o próprio inferno. Nada após a morte seria o paraíso... – O garçom grita que já chamou a polícia. É a deixa pra as últimas pessoas que sobravam (provavelmente cocinômanos de banheiro) irem embora.


- Vou morrer e o mundo continuará sem mim... Por que nos lamentamos desse tempo infinito posterior à morte, e que não será nosso, se não nos lamentamos do tempo infinito anterior a nossa morte, que também não vivemos?


- Eu lamento! O que me faz mais penar, e me traz pesar, é menos o tempo que não serei após a morte, mas todo o tempo que não fui antes de nascer. Queria ter vivido o Egito antigo, a Grécia antiga, todos os tempos do passado. E creio que posso ainda senti-los. Quero acreditar que não existe imaginação, que tudo é memória, passada ou futura. E se imagino que vivi naquela época, estou lembrando o que vivi, seja no passado, seja no futuro. – Os dois contendores giram como um rodamoinho derrubando cadeiras, mesas, garrafas e copos. As moças me olham com uma expressão de pedido de socorro.


- Os sonhos que agora tens foram causados pelos milhares de inextricáveis fatos que os precederam...


- E que os sucederam... Ao ler sobre história, tenho a sensação de que já vivi aquilo, assim como quando leio ficção futurista. – Os brigões giram em torno de nós, muito próximos.


- Talvez tenha vivido ou viverá mesmo. Uma prova disso pode ser o nosso idioma que permaneceu e permanecerá quase o mesmo nos tempos. Se cada momento fosse realmente novo, as palavras seriam novas...


- As palavras são as mesmas, os pensamentos, os mesmos; os sentimentos, os mesmos... Por isso acredito que o fato de se ter uma ideia original antes de todos não quer dizer nada... – Policiais de uniforme marrom chegam, apartam e levam os dois, algemados.


- Sim. Um escritor que escreveu algo já pensado anteriormente, mas que ele nunca lera, valerá mais que o antecessor dele, se conseguir escrever melhor... A linguagem é poesia fóssil.


- E a fala cotidiana é quase sempre uma declamação coletiva e repetida automaticamente de poemas úteis, inexpressivos e sem beleza. E o resultado dessa declamação é a humanidade. – Os garçons descem as portas de aço. Todos os bares se fecham. O lugar fica semi-deserto, à exceção das duas mulheres de pé, ainda assustadas, e de nós, é claro.


- Talvez se falássemos somente por metáforas, nos entenderíamos melhor e humanidade seria outra. Isso se a metáfora consistir em expressar os vínculos secretos entre as coisas.


- Seríamos todos Jesus. – Elas se entreolham e resolvem se sentar na mesma mesa. Ainda sobrara vinho.


- Se falarmos como ele, pensarmos como ele, portanto, sentiremos como ele e seremos ele. Então os cristãos deveriam ensinar principalmente as crianças a falarem como Jesus, seria o primeiro passo. As crianças aprendem facilmente o que recebem e conservam pra sempre. Assimilam em cera e conservam em mármore.


- Isso pra os cristãos, mas pra quem não é... Existem milhares de outras alternativas, ou seja, outras bibliotecas, além da Bíblia, outros personagens, além de Jesus, Deus, Buda... - As duas bebem e fumam. Eu dou mais uma tragada e bebo ouro gole.


- É, a Bíblia é uma pequena biblioteca de textos de autores com estilos completamente diferentes, de tempos distintos, mas as pessoas acreditam que foi escrita pelo personagem principal, ou seja, o Deus... – Rimos juntos.


- Pois é, os gregos e romanos, que acreditavam e se espelhavam em outros personagens, tinham uma outra moral, uma outra vida sexual, por exemplo... - Elas começam a se descontrair. Os ecos de suas falas se misturam às nossas no saguão do Arcângelo.


- Talvez o sucesso da literatura, da mitologia cristã em detrimento da greco-romana, seja o fato do cristianismo ter proposto uma nova ordem social, onde os mais fracos, os mais humildes tivessem vez, fossem protegidos pelo Estado, ao contrário da Roma Antiga, onde os mais fortes e poderosos escravizavam os mais fracos... Seria uma religião de escravos, conforme afirmou Nietsche.


- Mas fico imaginando se nossa sociedade tivesse adotado outras mitologias... O Brasil, por exemplo, se ao invés da Bíblia, seguisse a mitologia dos índios que aqui habitavam... - Embaixo das mesas delas, o pé de uma roça a perna da outra. Olho pra trás, pros lados. Não há ninguém além de nós.


- Bom, o ser humano tem a liberdade de escolher o que seguir, em que acreditar... Só que primeiro ele tem de se libertar da crença de que só exista um livro a seguir, ou de que só um livro contenha a verdade.


- E passar a ver que existem tantas outras opções e mais aquelas que qualquer um puder inventar... Bem, existe a quase infinita literatura... - Elas começam a se beijar, afagando-se os cabelos negros e loiros.






- Mas a maioria se abstêm dela, não é? São ascetas que se abstêm da literatura, masoquistas que se castigam não se sabe por que motivo. A literatura é uma das poucas formas de felicidade existentes, e abster-se dela é uma das muitas formas de estupidez...


- As pessoas precisam da certeza pra viver, da verdade, da segurança de uma certeza, de uma tábua de salvação nesse oceano de dúvidas... - Vagarosamente elas apertam as mãos nos bustos uma das outras. Meu coração dispara.


- E ignoram que a dúvida é um dos bens mais preciosos do homem. Ou seja, a incerteza é um bem, a insegurança é um bem.


- E da dúvida é que nasce o diálogo, se não houver ninguém do outro lado se defendendo com a armadura de uma certeza. - Começam a tirar os vestidos. Olho desesperado pros lados. Ninguém. Francisco parece não perceber nada. Meus lábios umedecem.


- Sim. Só assim pode existir o diálogo. O senhor já deve ter observado que somente o judeo-cristianismo-islamismo produziu guerras religiosas.


- Vide a guerra entre os leitores dos livros de Israel e de Maomé... São duas certezas se confrontando, não há dúvida, não há diálogo, apenas dois monólogos se atacando... – Elas ficam nuas, mas não retiram as joias brancas e douradas. Não tiram as alianças de casamento... Só então percebo que os jovens presos eram seus maridos.


- E como são religiões baseadas na ideia de inferno e céu, ou seja, castigo e recompensa, castigam-se uns aos outros, esperando uma recompensa nos céus. O que é uma imoralidade, já que essas religiões funcionam no esquema de punição ou suborno, inferno e céu...


- Daí surgirem aberrações como homens-bombas que esperam ser recebidos por virgens no céu, e soldados que bombardeiam crianças, acreditando agradar ao Deus. - Vejo nascerem nádegas lunares, brotarem botões róseos de seios. Bebo nervosamente meu último copo de cerveja.


- Não julgam seus atos em si, julgam pelas suas consequências, o que é uma imoralidade... Pelo castigo ou suborno que esperam deles...


- E assassinar crianças é absolutamente ruim, não há consequência, por mais complexa que seja, que justifique isso...- Uma escultura de corpo de mármore se entrelaça a outra de cobre. Dou uma profunda tragada em meu cigarro.


- E o pior é que os executantes dessas ações são inocentes... Quem explode o próprio corpo, acreditando ser recebido por virgens no céu... É muita inocência ou muita burrice... De modo que eu penso que, na verdade, existe inocência e ignorância na maldade e inteligência na bondade. A inteligência leva à bondade...


- E muita malandragem dos líderes desse ódio, em ambos os lados. Eles sabem que se Israel e Palestina fizerem as pazes pra sempre, eles perdem o poder pra sempre, os privilégios... Esses líderes que se dizem inimigos, precisam um do outro. Quando as coisas estão muito paradas, um deve ligar pro outro pra combinar algum ataque mútuo. – Rimos. Elas se abraçam e se beijam ajoelhadas.


- Por isso acho essencial que, por mais certos que acreditemos estar, sejamos suficientemente humildes pra tentar evoluir, aprender, repensar nossas certezas, melhorar-nos enquanto homens. Não existe nenhuma evolução ou revolução possível numa sociedade se cada indivíduo não melhora.


- Sim, porque os chefes, os políticos, aqueles que detêm algum tipo de poder são indivíduos. Então o político deve se abster da corrupção, os alunos têm de procurar ser mais dedicados, os pais tem de procurar educar melhor seus filhos, o viciado tem de deixar de usar drogas, o cidadão, de querer levar vantagem em tudo... E talvez se algum grupo social começar isso, influencie os demais, as multidões... As multidões são mais manejáveis, mais modificáveis, porque são mais simples que os indivíduos. – Elas estendem os vestidos no chão e se deitam.


- Um país construído exclusivamente de espertos, onde cada um pensa em sua fortuna pessoal e em seu destino pessoal, o resultado é a ruína geral... –


- A derrota geral... Mas acabamos descambando pra a política. – A morena começa um beijo, que vai escorrendo pelos lábios, queixo, pescoço da loira.


- A beleza é uma forma de medo ou inquietude...


- Hem?! O que o senhor disse?! – E os beijos escorrem do pescoço pra os rosados seios em flor.


- Se não me dissessem que era o amor, eu teria pensado que era uma espada nua...


- O senhor está vendo o que estou vendo? – E vai beijando o ventre níveo da outra... Depois invertem-se...


- O hálito da manhã envolve a floresta negra, enquanto a bruma noturna umedece a dourada floresta de outono... Um cego só enxerga por imagens literárias, meu caro. Por isso, a literatura é mais real pra mim que a realidade. - Francisco se despede num aperto de mão e volta andando lentamente com sua muleta pra dentro do Sebo, como um velho tigre pra sua gruta, até desaparecer na escuridão profunda.